sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Capitalismo e democracia: o gato e o peixe

Hoje me deparei com o seguinte comentário a respeito da relação entre capitalismo e democracia:

“Muito pelo contrário, democracia só existe com o capitalismo puro.Aliás, capitalismo nada mais é do que a consequência econômica de um governo que preze pelas liberdades individuais e pelo respeito à vida humana. Com efeito, apenas em um ambiente em que cada pessoa tenha direito à propriedade, e possa ficar com o produto de seu trabalho, haverá estímulo à produção de riquezas e às trocas comerciais, nas quais todos saem ganhando.Se o poder se concentrou nas mãos de uma elite globalista, como foi muito bem observado neste ditorial, a culpa não é do capitalismo propriamente dito, mas da falta de mecanismos que possibilitariam um cenário de real competição e liberdade de mercado. Em suma, foi por falta de capitalismo. É isso o que precisa ser corrigido.Pelo contrário, atualmente, estamos vendo a elite globalista concentrar não apenas o capital que move o mundo, mas também o poder político das nações soberanas. É evidente que isso não é capitalismo.Muito pelo contrário, é socialismo. De fato, em Cuba, por exemplo, há uma aristocracia, encabeçada pelo monarca absolutista da ilha ( Fidel Castro ), que se coloca acima da sociedade e do Estado. É a total concentração de poder político e econômico na aristocracia, o que é uma característica do socialismo e de sistemas marxistas, de uma forma geral.O capitalismo, se não se mantiver puro, com reais condições de livre concorrência e livre mercado e, acima de tudo, se não mantiver a base sobre a qual foi erguido, ou seja, o respeito à vida humana e às liberdades individuais, tende a ser um sistema concentrador de riquezas e poder que pode desaguar no totalitarismo.Concluindo, podemos afirmar que democracia e capitalismo (capitalismo puro e verdadeiro, é bom frisar) são praticamente sinônimos. Fora do capitalismo-democracia, não existe sistema nenhum que possa garantir uma sociedade saudável, justiça social, liberdade e respeito pela vida humana, como confirmou a história, haja vista que os sistemas baseados no marxismo resultaram em guerras, genocídios, totalitarismos, em regimes brutalmente opressores, sendo especulado que foram responsáveis pela morte de até de um bilhão e meio de pessoas, de acordo com a Wikipedia.”

Incrível! Desde a publicação de “A Riqueza das Nações” pelo pai do liberalismo econômico, o escocês Adam Smith, deixamos para trás mais de dois séculos, dezenas de guerras (duas mundiais), incontáveis revoluções sociais e tecnológicas, inúmeras crises econômicas avassaladoras. E não é que, apesar de todos esses acontecimentos para demonstrar o fracasso da "mão invisível" ainda tem quem a defenda como um espartano ranheta?

Defender o capitalismo argumentando que este só não está dando certo porque não está sendo aplicado na sua forma “pura” chega a ser ridículo. Essa posição é tão absurda quanto à dos defensores da idéia de que o socialismo fracassou porque não foi aplicado na sua forma “ideal”, que, inclusive, exigia que houvesse revolução em todos os países do mundo. Então, o que seria exatamente esse “capitalismo puro”? Resposta: Trata-se de um capitalismo pelo capitalismo, sem interferências políticas. Pode rir agora. Pronto. Pode parar de rir. Chega.

Essa posição me lembra muito a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, abandonada há muito no meio jurídico, segundo a qual o Direito deve ser aplicado livre de qualquer interferência política. Esquecem-se os partidários dessa “pureza” que o pensamento e os atos humanos nunca são“puros”. Há política em tudo, pelo menos em tudo que exige decisão. Como dizia Aristóteles, o homem é um animal político. No Direito, como exigir, por exemplo, que um juiz elabore uma sentença abandonando plenamente todas as suas convicções, fruto das experiências e vivências que passou durante sua vida? Do mesmo modo, no âmbito econômico, como exigir que os agentes econômicos estejam despojados de seus direcionamentos políticos enquanto decidem onde estabelecer sua nova sede, qual fatia do mercado quer angariar, o quanto do seu faturamento destinar a pesquisas ou programas socioambientais, qual o salário dos seus dirigentes? Sinto muito, mas não consigo acreditar nessa separação radical, da forma como concebida na “pureza” dessas teorias.

O fato é que o capitalismo pode tanto ser construtivo quanto destrutivo. E nos moldes em que é aplicado, hoje, sem dúvida nenhuma, é prejudicial a toda a sociedade, posto que forma uma pequena elite às custas do sofrimento de milhões de miseráveis – a sociedade do 1/5, como relatam Hans-Peter Martin e Harald Shumann, em “A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar social” (São Paulo: Globo, 1997).

O “capitalismo puro”, no fim das contas, é só a guerra de todos contra todos, da qual sempre sairá vitorioso o mais forte. Este, como se vê a todo instante, inevitavelmente submete o mais fraco, o trabalhador, mesmo que este, profundamente submerso na alienação que incansavelmente lhe bombardeia, não se dê conta dessa derrota.

Tudo bem citar os exemplos desastrosos do socialismo como exemplo do fracasso do sistema como um todo, mas daí a querer, pelas mesmas razões, elogiar o capitalismo é quase infantil. É reduzir os modos de produção a apenas dois modelos completamente antagônicos, como se não fosse possível qualquer mescla deles ou o surgimento de um terceiro modelo.

Os desastres causados pelo socialismo nos países que o adotaram são realmente uma forte crítica, mas é impossível deixar de usar a reciprocidade e citar as mazelas causadas a milhões de miseráveis dos países capitalistas, tanto ricos, como bem está demonstrando esta desenfreada crise mundial e os consequentes movimentos "Occupy", quanto pobres, como sempre se pôde perceber.

Temos que admitir: os dois modelos comprovadamente falharam. O que me parece sensato é tentar construir, dia-a-dia, um capitalismo responsável.

O Estado deve, sim, regular mais fortemente a atuação do capital (leia-se, das empresas e dos seus donos) para direcionar os seus benefícios a todos, sobretudo aos que possuem menos, e não apenas a uma pequena elite que não se cansa de ser em tudo privilegiada. Tal modelo sim seria ético.

O “estímulo à produção de riquezas” a que se refere o autor do comentário acima é perfeitamente possível em um sistema capitalista que prime pelo desenvolvimento social, e não unicamente econômico. Em um sistema assim, as pessoas não seriam proibidas de ficarem ricas, desde que contribuíssem devidamente com a sua parte à sociedade. Os mais abastados seriam mais tributados, haveria imposto sobre as grandes fortunas e as heranças, sistema de previdência e segurança social decentes, políticas fortes de inclusão social, serviços públicos de alta qualidade, sobretudo educação, saúde, segurança, etc.

Deixar tudo nas mãos do deus mercado, de modo a aplicar o “capitalismo puro”, é deixar o gato cuidando do peixe.

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