sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A culpa pelo caos

Hoje assisti a um pedaço do Jornal Nacional que noticiava a situação da coleta de lixo na cidade de Duque de Caxias-RJ. Lembrei-me rapidinho do porquê eu não assisto TV há tanto tempo.
Segundo a reportagem, a causa principal para o lixo não estar sendo recolhido é que a prefeitura parou de pagar a empresa responsável pelo serviço, e então, esta não mais realizou a sua parte do contrato, ou seja, parou de limpar a cidade. Em nenhum momento a reportagem deu a entender que a empresa estava errada em deixar de prestar o serviço essencial à população, de coletar o lixo, e talvez realmente não estivesse.
O que impressiona, de fato, é que a notícia foi completamente diferente das reportagens que tratam de paralisação de atividades públicas por causa de greves. Nesses casos, a grande imprensa monta as reportagens colocando a culpa do caos nos trabalhadores, e não nas empresas e governos que deixam de pagar os salários dos empregados ou se negam a cumprir sua prestação nos contratos de trabalho. Dois pesos, duas medidas. Às empresas é lícito resistir ao não cumprimento de um contrato, afinal, o ente público é que tem errou; mas, de outro lado, os trabalhadores lesados não podem protestar, pois devem se conformar em trabalhar sob quaisquer condições, recebendo salário ou não. Enfim, se a causa da imundície fosse a greve dos lixeiros, a reportagem certamente iria tratá-los como criminosos, como sempre faz com os grevistas e sindicalistas.
E o direito fundamental à greve vai, assim, sendo destruído dia-a-dia, enquanto o direito das empresas fazerem o que bem entendem vai sendo consolidado como absoluto, não importando às custas da dignidade de quantas pessoas.

O esquerdista e seu iPhone

Na mesma esteira do pessoal que fala mal de quem não gosta de Big Brother ou de quem é fã de Chico Buarque, virou moda também criticar o discurso da esquerda usando para isso os bens que a pessoa de esquerda possui. Exemplo: "Você fala mal do capitalismo mas tem uma conta no Facebook, que é uma empresa privada americana." ou "Você diz que é comunista mas tem um Ford!"

Por coerência, então, se um esquerdista não pode ter determinados bens, como telefone celular ou carro, então, a pessoa que é de direita ou “neutra” não pode votar, expressar-se, ir e vir, associar-se livremente, ter resguardadas a privacidade e intimidade, inclusive do lar; também não pode resistir a ordens arbitrárias e ilegais do poder público, mesmo relacionadas à pena de prisão, nem exigir ser tratada sem discriminação; não pode, igualmente, ter suas próprias crenças religiosas e convicções políticas, muito menos reivindicar direitos do consumidor, da criança e do adolescente, ambientais, trabalhistas ou previdenciários e nem mesmo qualquer direito à educação, saúde e segurança, além de outros muitos direitos individuais e coletivos. 

Afinal, todos esses direitos e garantias que hoje consideramos básicos, fundamentais, foram conquistados às custas do suor e sangue de milhares de esquerditsas, que ao longo da história lutaram para que todos, sem nenhuma exceção, pudessem ter uma vida digna. 


Claro que não pega bem um militante dos direitos humanos ter uma Ferrari, assinar a Caras, comprar na Zara, ter uma coleção de autênticos Rolex e comer frequentemente no Mc Donald’s. Mas essa ostentação toda não se compara ao simples fato de se possuir determinado tipo de bem de simples uso e conforto. Queiramos ou não, mesmo quem critica o sistema capitalista neoliberal selvagem, ainda está nele inserido. A ideia é mudar a situação atual, e não fugir dela.


Imaginemos a seguinte situação: Alguém critica um esquerdista por ter uma conta no Facebook, um carro e um telefone de última geração. 

Mas o que, de fato, se esperaria? Que o esquerdista deletasse seu Face e doasse seus bens para a caridade, afinal, se a pessoa quer maldizer qualquer característica do capitalismo, para ter coerência, deve se desvincular completamente do sistema? Deve fazer voto de pobreza, então? Carro, telefone, mobília, eletrodomésticos, livros... Tudo está contaminado com a saliva de satã? Ele não pode mais andar de carro, nem de ônibus, pois foram feitos por empresas particulares e pertencem ao capital? Locomoção, agora, só a pé? Morar em prédio ou casa? Não dá, pois essa arquitetura absolutamente funcional é capitalista, além de serem construídas pelo proletário explorado em benefício de porcos capitalistas? Comida? Só proveniente diretamente do que ele mesmo plantar? TV, música e filmes? Malditas sejam todas as emissoras, gravadoras e distribuidoras? É isso?

Para ser coerente, tem que fazer como o protagonista do filme "Na natureza selvagem", mas, mais esperto, ir para um cenário como o de "Lagoa Azul"? Tudo que tenha respingo da sociedade capitalista não lhe diz mais respeito?

E não se diga que esses exemplos são muito extremos, pois a própria crítica inicial, de exigir que a pessoa de esquerda não se conecte e não possua bens, já é o cúmulo do absurdo em si.

Criticar os que se indignam (não os seus argumentos), no fim das contas, é servir aos interesses de quem? Trata-se de um argumento que vem a calhar para a direita mais conservadora e reacionária, pois exige que os esquerdistas lutem desarmados, sem as ferramentas apropriadas no contexto atual, o que, convenhamos, é bem covarde. Essas formas de desestimular a indignação são de arrepiar, pois pessoas mais mal informadas às vezes tomam sua posição tendo em vista a opinião desses pseudo-comentaristas que, ao contrário de pecarem pela ignorância, escolheram deliberadamente defender o lado do opressor nos conflitos sociais. Esse pensamento é tão chulo quanto exigir que fuja de casa o adolescente que critica determinados comportamentos dos pais, ou pretender que obrigatoriamente peça demissão o funcionário que discorda do modo como o patrão está conduzindo os negócios.

Mas a boa notícia é que esses esquerdistas "incoerentes" estão se espalhando como pragas! Mais um pouco e eles vão estar promovendo distribuição de renda e justiça social, e, pior, de dentro, usando-se do próprio sistema capitalista, que absurdo!

Aliás, a Primavera Árabe, os movimentos Occupy, e as manifestações gregas e espanholas tiveram como locomotivas as redes sociais. 

Na verdade, nenhum esquerdista minimamente sério nega progressos e benefícios do capitalismo, mas se comove com a quais custas eles são forjados e a quem eles são primordialmente direcionados.

Interessante ver que todo mundo, hoje, critica o capitalismo - os presidentes do Citigroup e do próprio FMI, o Warren Buffet, o Bill Gates, até a liderança do partido republicano dos EUA- e os esquerdistas que têm uma conta no Facebook, um carro e um iPhone é que são irritantemente incoerente?

Então, se for começar uma discussão séria e madura sobre política ou direitos humanos, por favor, evite esse tipo de argumentação chula e vergonhosa, que procura, jogando para a plateia um cínico e velho truque, achar no “oponente” algo que supostamente o desabone, em vez de atacar os seus argumentos (“argumentum ad hominem”). Isso sem contar outras afirmações ridiculamente infantis, tipo “Cuba é uma porcaria, a China é totalitária e a União Soviética fracassou, então, logicamente, o capitalismo neoliberal é justo e maravilhoso” ou "É contra o capitalismo? Vá pra Cuba!". Sinceramente, para quem não sabe ir mais longe do que isso, o silêncio é uma boa opção, mas eu recomendo mesmo é um estudo mais aprofundado do assunto em debate para fugir desses impensados lugares-comuns.

P.S.: Por acaso, achei este texto, extremamente coerente, a respeito do assunto: Direita volver: A caduquice do franciscanismo de esquerda.