terça-feira, 20 de agosto de 2013

Estágio obrigatório no SUS e a função social da Medicina

Fato 1: Médicos raramente ou nunca fazem manifestação contra os planos de saúde que tanto os exploram e nem contra as más condições do SUS e nem contra a concessão de diplomas por faculdades de fundo de quintal.

Fato 2: Entidades médicas não soltam notas de repúdio contra profissionais que (i) batem o ponto e vão embora, no SUS; (ii) cobram “por fora” consultas do SUS, (iii) passam na frente pacientes “particulares” (sem convênio), em detrimento dos que arcam com planos de saúde, (iv) cobram “por fora” dos convênios para realizar procedimentos complexos (v) sendo peritos, sempre inocentam seus colegas, mesmo que tenham cometido erros grosseiros, (vi) atrasam reiteradamente o horários das consultas.

Fato 3: O Programa Mais Médicos hoje paga R$ 10.000,00 por mês (mais uma ajuda de custo que chega a R$ 30.000,00 nos primeiros meses), valor que não pode ser considerado totalmente fora do que o mercado privado paga para quem acabou de se formar em Medicina.

Levando em consideração esses fatos, por que está havendo esse reboliço todo da classe médica contra as medidas pretendidas pelo governo federal para distribuir territorialmente os médicos e melhorar a saúde pública em áreas remotas do Brasil?

A inexistência de médicos em lugares longínquos é um problema de mercado, afinal, eles não querem ir onde precisariam, por não receber tanto quanto acham que merecem ou por outras razões. O Estado tem duas opções: aceitar o problema ou tentar combatê-lo.

Deixar tudo como está, como fez até agora, está fora de cogitação. Ao querer resolver a celeuma, devem ser adotadas algumas políticas públicas, que podem ou não contrariar interesses de classe. Pagar R$ 10.000,00 a médicos recém formados certamente é uma boa tentativa de solução. Mas e se mesmo assim, 90% das vagas não foram preenchidas? O que está ocorrendo é que os médicos não querem ir, mesmo que por altos salários, para os lugares onde não há médicos. Como corrigir essa falha de mercado, então?

A ideia do plano de carreira pública é totalmente válida, uma vez que fixaria os médicos aos lugares menos favorecidos. Porém, juridicamente, há ainda o problema da competência constitucional para regular a matéria da saúde, uma vez que os hospitais públicos são administrados pelos Estados e Municípios, e não pela União. Quanto tempo demoraria para que todas as cidades tivessem um plano de carreira? Nesse meio-tempo, quantos miseráveis precisariam morrer por não ter um profissional que apenas diga por que eles estavam com febre e receitasse o remédio correto? Não obstante, é fácil prever que meso se adotada a medida, ainda assim os médicos, no mais das vezes, não serão atraídos a lugares esmos. O exemplo de São Paulo é eloqüente: recentemente foi instituída uma carreira pública com remuneração inicial superior a R$ 14 mil e mesmo assim não se preencheram as vagas disponíveis nas periferias e nas cidades mais afastadas. Pior, a mídia tem divulgado diversos casos de cidades muito longínquas totalmente bem equipadas e dispostas a pagar salários de quase R$ 20 mil, muito acima do "valor de mercado" do recém-formado, onde simplesmente não há candidatos ao trabalho. Não adianta se iludir e achar que a solução é só dinheiro. Não é.

E a solução de obrigar os recém-formados a ir aos locais onde não há médicos? Não parece uma boa solução, colocada dessa maneira, pois uma democracia não pode forçar, sob pena de sanções, pessoas livres a se deslocarem para onde não desejam ir. Seria uma espécie de serviço civil obrigatório, de notória inconstitucionalidade.

E dar ao médico que terminou a faculdade uma licença provisória e parcial para que apenas possa trabalhar na saúde pública por algum tempo, para depois exercer plenamente a profissão?

A questão, no fundo, é escolher se a Medicina será usada em benefício social ou se vai ser um mero instrumento mercantil de enriquecimento individual.

Pensemos no seguinte: por que é tão bonito que um médico recém-formado aceite ir trabalhar em uma região longínqua, sem ter disponíveis os confortos dos grandes centros, apenas pela satisfação de cuidar dos necessitados? Arriscaria responder que é porque se trata de um ato de cidadania e de solidariedade. Mas, ora, a cidadania e a solidariedade não são exatamente a base de uma sociedade mais justa e igualitária que se quer construir, em oposição à atual, baseada exclusivamente no individualismo, no consumismo e no dinheiro? Por que o Estado não pode adotar medidas para institucionalizar esses valores no acesso à saúde pública? Seria esse caso tão diferente de exigir que uma empresa cumpra sua função social, como determina a Constituição? Tendo a crer que não.

O Estado pode regulamentar os requisitos para a concessão do diploma. Há autorização constitucional para tanto no artigo 5º, inciso XII, da Carta Magna de 1988, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ainda, no inciso XVI do artigo 22 da Carta há atribuição expressa à União para impor "condições ao exercício de profissões".

Com efeito, então, estabelecer como requisito para qualificação profissional o estágio na saúde pública, além ter autorização expressa no ordenamento jurídico, parece ser um eficiente mecanismo de efetivar o direito fundamental à saúde, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal. 

Outros cursos têm previsão de obrigatoriedade de estágio para a concessão do diploma, por que Medicina não pode ter? Nas faculdades de licenciatura, os alunos recentemente fizeram protestos e greves contra um programa do governo de SP que, por mais paradoxal que seja, diminuiu ou acaba com o estágio obrigatório, exatamente porque trata-se de uma etapa extremamente importante na formação do professor, cuja falta seria sentida na deterioração ainda maior da educação no Estado.

Dois valores estão em conflito aqui: de um lado o direito individual do médico-formando de utilizar os seus anos de estudos como ele bem entender e, de outro, o direito dos mais pobres de terem acesso à saúde. O Estado deve fazer o seu juízo de valor e decidir qual desses valores irá privilegiar. A medicina cidadã e social, voltada à saúde, ou uma medicina mercanitilizada, voltada ao dinheiro. É sintomático de uma sociedade enfraquecida que as pessoas se solidarizem muito mais com estudantes de medicina do que com as pessoas que adoecem e morrem por não terem acesso a médicos.

“Ah, mas o médico merece ganhar bem e ter o direito de escolher porque ele estudou para isso.” Outros profissionais de outros ramos também estudam até muito mais do que os médicos e recebem muito menos. Ofereça-lhes mais de R$ 10.000,00 por mês e, em geral, eles não vão trabalhar em qualquer canto do país. Por que a medicina tem que ser essa casta intocável? Porque o “mercado”, essa entidade inteligente, assim o deseja, já que ultra-valoriza esse profissional? Mais uma vez saliento, cabe ao Estado corrigir essas distorções anti-sociais do mercado. Ademais, seria uma situação temporária, vez que após recebida a licença definitiva vai ser perfeitamente possível o médico atuar, legitimamente ou não, apenas para o próprio enriquecimento.

A mensagem seria clara: “Esta sociedade não aceita que a Medicina, dado o seu essencial valor social, seja utilizada exclusivamente para fins particulares; para exercê-la, a pessoa tem o dever de colaborar solidariamente, ao menos um mínimo, com o acesso e direito à saúde dos demais cidadãos que se vêm apartados do sistema de saúde pública.”

O Estado, então, pode determinar que a licença definitiva do médico só será dada depois de realizado um período de trabalho nos lugares onde faltam médicos, ou seja, nas periferias e sertões do Brasil. Nunca é demais lembrar que, nos termos da Constituição Federal de 1988, nossa República tem como fundamento a cidadania e os valores sociais do trabalho (artigo 1º), além de ter como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos e a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 4º), valores que no fim das contas, como já dito, coincidem com a motivação desejável do médico que se forma e vai, por puro idealismo, para os sertões do Brasil.

Penso, contudo, que o lugar onde esse serviço se dará deveria ser escolha do formando, mas se não houver vaga onde ele quiser, deve, então, esperar que alguma seja aberta, o que obviamente atrasaria a concessão da licença definitiva. Imagino, ainda, que deve haver atribuição de pontos extras nas provas de residência aos que forem para áreas distantes - já que a Medicina daqui é de culto à especialização, da qual a residência é uma etapa praticamente obrigatória (e nunca ninguém reclamou). Mais do que isso, em relação a áreas realmente críticas, deve haver uma redução no tempo de estágio, como incentivo a mais para que essas localidades sejam escolhidas.

Um dos efeitos colaterais benéficos dessa nova etapa de formação é que o médico recém-formado irá ter contato com as pessoas do mundo real, com seres humanos comuns, com os verdadeiros brasileiros, muito diferentes daqueles pacientes das clínicas particulares e dos casos escabrosos e incomuns dos hospitais universitários. Essa experiência é fundamental para o exercício digno e humano da medicina, totalmente conforme o juramento de Hipócrates feito por todos os médicos, que embora não tenha força jurídica, certamente possui grande valor moral.

Outros países já perceberam nessa obrigatoriedade um modo de efetivar a função social da Medicina e o direito fundamental à saúde de seus cidadãos. Suécia e Reino unido, por exemplo, países que consideramos democráticos, condicionam a licença para atuar como médico a dois anos de serviço obrigatório no sistema público de saúde.

Outrossim, o estágio obrigatório, nos moldes propostos, não se confunde com o vedado deslocamento compulsório ou serviço civil obrigatório, afinal, não há uma punição severa para quem não for trabalhar nos lugares determinados onde faltam médicos, sendo certo que a pessoa apenas sofrerá o dissabor de esperar mais para receber a licença definitiva, o que se encontra dentro das prerrogativas do Estado, como já dito. Quantos profissionais de outras áreas não são obrigados a migrar após se formarem, pois na região onde moram e fizeram o curso de graduação não há vagas na profissão que escolheram?

Por fim, em relação aos médicos estrangeiros, é muito positiva a ideia de criar uma prova diferenciada de revalidação de diploma, que confira licença provisória e limitada, para profissionais de outros países atenderem apenas na medicina básica e, ainda assim, nos lugares onde não há médicos. Afinal, todos sabem que o Revalida atual foi feito para reprovar, com perguntas extremamente difíceis e capciosas, que nada têm a ver com a medicina básica que falta nos interiores do país. O Brasil é um dos países onde há menos médicos estrangeiros, menos de 2% do total. Por que esse medo de abrir as portas aos profissionais de fora? Parece haver um excessivo protecionismo de classe. Diga-se, ainda, que se o argumento é que os médicos de fora precisam passar por uma prova difícil para proteger os pacientes de maus médicos (o que é perfeitamente justo), então, levando-se a ferro e fogo essa ideia de proteger os pacientes, teríamos que obrigar todos os médicos, brasileiros ou não, a passarem periodicamente por uma prova de dificuldade igual ao Revalida. 

Não seria mais simples, justo e produtivo criar uma nova prova remodelada para estrangeiros exercerem a medicina básica e preventiva? (Isso tudo para não dizer que há países desenvolvidos que sequer exigem alguma prova, bastando a comparação de grades curriculares para a concessão da licença para o médico trabalhar. No Canadá e Austrália, por exemplo, existe um exame de validação do diploma igual o Revalida, mas também há programas específicos que dão autorização especial para o médico atuar na áreas de maior carência de médicos.) Inclusive, pesquisas de opinião recentes mostram que, apesar dos esforços dos médicos para passar à população a ideia de que não faltam médicos e que os médicos estrangeiros são uma ameaça, a maioria apoia a vinda deles para onde os daqui não se interessam em ir.  

No meio tempo, obviamente, os governos devem fazer a sua parte: (i) melhorar as condições de exercício da Medicina, implementando infra-estrutura adequada, (ii) garantir que os profissionais, nesses locais distantes, tenham acompanhamento de profissionais já capacitados, como professores das universidades federais, (ii) revolucionar o currículo do curso de Medicina, para que dê ênfase na medicina humanista, preventiva e da família – com ênfase na pessoa humana do paciente-cidadão, através da interação e do diálogo médico-paciente, e não apenas na doença, nos exames e nos remédios – muito mais barata e eficiente para a melhoria da Saúde do que o modo mercantil atual, de ultra-especialização e concentração geográfica, (iii) ampliar radicalmente o número de vagas dos cursos de Medicina, com qualidade, (iv) implementar uma carreira pública de medicina, tal como a de juiz ou promotor.

Chegou a hora de ouvir a voz das ruas, que pediam melhoras na saúde pública. Os médicos têm o direito de se posicionarem contra medidas estatais que de alguma forma conflitam com seus interesses de classe, todavia, como restou demonstrado, a sociedade justa e solidária que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, pretende-se construir não dá respaldo a seus argumentos meramente individualistas; mais do que isso, o que toda a ordem social está clamando é que se efetive, a curto, médio e longo prazo, a função social da Medicina e, por consequência, o acesso e direito à saúde de todas as pessoas.