quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O real problema

Apesar das divergências, eu respeito os liberais convictos, que acreditam que o livre-mercado é o ideal de modelo econômico a ser adotado para se chegar à justiça social. Essa diferença de meios para se atingir um ideal é perfeitamente compreensível. A meu ver, o problema não são eles.

O problema são os que acham:
- que o bolsa família é só uma esmola para comprar votos;
- que as feministas são mal-comidas;
- que negros não são discriminados;
- que bandido bom é bandido morto;
- que mulher de roupa curta pede pra ser estuprada;
- que pobre só continua pobre porque se acomoda;
- que a polícia não é truculenta ou que apenas responde às agressões que sofre;
- que se combate a criminalidade aumentando as penas, reduzindo a maioridade penal e maltratando presidiários;
- que a ditadura militar foi boa para o Brasil;
- que o MST é um grupo terrorista;
- que ser viciado em drogas, se travestir ou se prostituir é falta de caráter;
- que os nordestinos é que são o problema;
- que índio é tudo safado;
- que ateísmo é sinônimo de rebeldia sem causa;
- que o Estado laico é frescura;
- que as políticas públicas devem seguir preceitos bíblicos;
- que casamento é só entre homem e mulher;
- que os black blocks são só bandidos mascarados;
- que fazer protesto e greve é coisa de desocupado e vagabundo;
- que sindicalismo é um atraso de vida;
- que o Feliciano e o Bolsonaro estão fazendo um excelente trabalho, enquanto o Jean Wyllys é o verdadeiro anti-Cristo;
- que é só coincidência que "tiros acidentais" fatais da polícia só ocorram nas periferias;
- que os "autos de resistência seguida de morte" não são execuções sumárias da polícia;
- que favelado é tudo bandido;
- que funkeiros são promíscuos e imorais;
- que as regras gramaticais devem ser sempre rigidamente respeitadas e quem não as segue é ignorante;
- que Joaquim Barbosa é o herói nacional;
- que preso doente tem que morrer, e não se tratar;
- que condenação sem prova é aceitável, desde que seja de desafetos políticos;
- que o Mais Médicos é um programa eleitoreiro e inútil, porque não faltam médicos, mas apenas infra-estrutura;
- que a Medicina deve curar doenças e não cuidar das pessoas doentes;
- que a grande mídia é neutra por não opinar expressamente sobre as notícias;
- que as piadas do Danilo Gentili são inofensivas, estando erradas as vítimas que inadvertidamente ficam ofendidas;
- que o modelo ideal de sociedade é o dos EUA - com seu culto à violência, à arma, à guerra, ao dinheiro, ao consumo e ao individualismo;
- que é o islamismo fanático a grande causa do 11 de setembro;
- que o terrorismo justifica guerras;
- que a função da escola é apenas ensinar, e não educar e formar cidadãos críticos;
- que ordem, autoritarismo e disciplina são sempre ótimos sinais;
- que "capitalismo", "burguesia" e "classe trabalhadora" são palavras sujas e proibidas;
- que Karl Marx, Che Guevara e Satanás são a mesma pessoa;
- que os estudantes da USP que protestam são maconheiros que não querem nada da vida;
- que não há nenhum problema em empresas privadas financiarem campanhas eleitorais;
- que morador de rua tem que ser varrido do mapa;
- que deveriam castrar as mulheres pobres;
- que funcionários públicos são todos vagabundos que deram um jeito de "se encostar" no Estado;
- que todo mundo que discorda de qualquer das ideias acima é malvado, por ser um comunista adorador de Stalin que quer implantar no Brasil uma ditadura cruel.

Esses sim me preocupam e desanimam, causam medo, calafrios e pesadelos.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Uso de animais em experimentos

Publico o texto de um amigo meu, Guilherme Kamitsuji, sobre os experimentos com animais, com o qual eu não necessariamente concordo, mas acho a discussão muito relevante.

"Ganhou grande repercussão na mídia o grupo que invadiu o instituto Royal para libertar os cães da raça Beagle utilizados em experimentos. E mais uma vez, foi novamente aberto o debate sobre a utilização de animais em pesquisas científicas, evidenciando muitas vezes que por trás de argumentos supostamente a favor da bioética, se escondem apenas visões apaixonadas e desconhecimento científico.

Um argumento aceito sem nenhuma contestação, quase uma verdade absoluta, utilizado pelos ativistas dos direitos dos animais, é o de que os países “civilizados” estão abolindo de vez o uso de animais em experimentos.

 Antes de mais nada, o que não levam em consideração é a amplitude das pesquisas em saúde. Temos pesquisas sobre doenças causadas por parasitas, vírus, fungos, bactérias e tumores, doenças auto imunes, doenças tropicais (ex. malária, doença de Chagas), doenças decorrentes do estilo de vida moderno, como é o caso do diabetes e a hipertensão, e das relativas ao aumento da longevidade. E claro, existem as pesquisas sobre a eficácia de medicamentos para todas essas doenças. Pergunto: todas essas doenças utilizam o mesmo tipo de experimento? São todas pesquisadas da mesma forma. A resposta, obviamente, é não, cada uma delas possui peculiaridades que podem afastar, ou não, o uso de animais.

Existem muitos tipos de pesquisa em que o uso de animais já está sendo dispensado, como no caso de alguns cosméticos. Mas não é verdade que o uso dos animais é dispensável para todos os tipos de experimentos. Infelizmente isso ainda não é possível. A diversidade de doenças e remédios é tão grande que não existe um modelo de experimento comum a todos eles. Cada tipo de doença, cada classe de medicamentos possui especificidades que podem, ou não, exigir que animais sejam utilizados nos testes.

Outro argumento utilizado é o de que apenas 6% (alguns dizem 10%, outros 1%, aí a manipulação de dados rola solta) desses experimentos tem algum resultado conclusivo, chegando, de fato, a testes clínicos em humanos, o que levaria à conclusão de que os testes em animais deveriam ser abolidos.

Ocorre que o que eles não se dão conta é que a ciência se faz com base em tentativas e em observação, principalmente quando se trata das biomédicas. E sempre ocorrem muito mais erros do que acertos, porque não são ciências exatas. Os animais – nós incluídos – têm uma infinidade de características que podem levar a respostas diferentes a um determinado medicamento. Apenas para exemplificar: os cães têm alguns tipos de anticorpos que não temos, o mesmo para os ratos, os bovinos etc. E seu organismo pode metabolizar ou não algumas substâncias. Isso sem contar que as características individuais, como idade, peso, tamanho, tipo sanguíneo, entre outros, podem influenciar no resultado do experimento.

Só com base nessas variáveis descritas já é possível ver que para chegar a uma conclusão simples, como a de que para tratar uma infecção é necessário tomar dois comprimidos de 1 mg, duas vezes ao dia, por uma semana, é necessário um número enorme de experimentos e testes, antes de se chegar a um dado seguro. Isso sem contar os testes que foram feitos para chegar à conclusão de que um determinado fármaco é eficiente para combater uma determinada doença.

É por isso que aquela porcentagem, embora pequena, em nada serve para abolir o uso de animais. Para se chegar a um dado conclusivo é preciso uma quantidade enorme de testes, que em sua maioria vai dar errado. Seria ótimo se houvesse outro jeito. O que os ativistas não conseguem é mostrar alternativas. Só dizem que a porcentagem é baixa e que por isso deve acabar. Ponto.

A todo instante nos deparamos com novas doenças. Quem há dez anos achava que teríamos uma gripe nova, como foi a gripe suína e a aviária? Há 40 anos não conhecíamos a AIDS. Não é questão de colocar o dinheiro em primeiro lugar. Medicamentos importantes, vacinas e outros tipos de tratamentos são desenvolvidos com base em testes em animais. Drogas para câncer, AIDS, pesquisas com células tronco, tudo isso hoje é pesquisado com animais.

A todo momento nós temos que lidar com doenças novas, novas drogas são descobertas, podem aparecer novos tipos de neoplasias, os microorganismos estão em constante mutação, enfim, não se pode generalizar, nem todos os testes dispensam o uso de animais, infelizmente. Seria ótimo se fosse desse jeito, mas não é.
E mais: quem disse que conhecemos tudo sobre fisiologia, biologia molecular, genética, imunologia, farmacologia etc? Ainda há muito a ser descoberto e pesquisado. E os animais ainda terão muito a contribuir nessas descobertas. Descobertas que um dia podem ser a diferença para a cura da AIDS, da dengue, do mal de Alzheimer, entre tantos outros males que matam milhões de pessoas todos os anos.

Causa muita comoção ver animais serem utilizados em experimentos. Mas antes de criticar, de chamar os cientistas de mercenários, os ativistas precisam entender como se faz pesquisa, quais são as variáveis envolvidas, o que dispensa e o que não dispensa o uso de animais, antes de chegar a posicionamentos radicais como o de que os testes devem ser abolidos por completo. Ciência se constrói com base em tentativas e, principalmente, em somatória de conhecimentos, das contribuições de todos os pesquisadores. Seria muito mais útil se apontassem alternativas factíveis, e não argumentos rasos como “os países europeus já estão abolindo”, sem levar em conta qual tipo de medicamento ou doença está se levando em conta."

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Estágio obrigatório no SUS e a função social da Medicina

Fato 1: Médicos raramente ou nunca fazem manifestação contra os planos de saúde que tanto os exploram e nem contra as más condições do SUS e nem contra a concessão de diplomas por faculdades de fundo de quintal.

Fato 2: Entidades médicas não soltam notas de repúdio contra profissionais que (i) batem o ponto e vão embora, no SUS; (ii) cobram “por fora” consultas do SUS, (iii) passam na frente pacientes “particulares” (sem convênio), em detrimento dos que arcam com planos de saúde, (iv) cobram “por fora” dos convênios para realizar procedimentos complexos (v) sendo peritos, sempre inocentam seus colegas, mesmo que tenham cometido erros grosseiros, (vi) atrasam reiteradamente o horários das consultas.

Fato 3: O Programa Mais Médicos hoje paga R$ 10.000,00 por mês (mais uma ajuda de custo que chega a R$ 30.000,00 nos primeiros meses), valor que não pode ser considerado totalmente fora do que o mercado privado paga para quem acabou de se formar em Medicina.

Levando em consideração esses fatos, por que está havendo esse reboliço todo da classe médica contra as medidas pretendidas pelo governo federal para distribuir territorialmente os médicos e melhorar a saúde pública em áreas remotas do Brasil?

A inexistência de médicos em lugares longínquos é um problema de mercado, afinal, eles não querem ir onde precisariam, por não receber tanto quanto acham que merecem ou por outras razões. O Estado tem duas opções: aceitar o problema ou tentar combatê-lo.

Deixar tudo como está, como fez até agora, está fora de cogitação. Ao querer resolver a celeuma, devem ser adotadas algumas políticas públicas, que podem ou não contrariar interesses de classe. Pagar R$ 10.000,00 a médicos recém formados certamente é uma boa tentativa de solução. Mas e se mesmo assim, 90% das vagas não foram preenchidas? O que está ocorrendo é que os médicos não querem ir, mesmo que por altos salários, para os lugares onde não há médicos. Como corrigir essa falha de mercado, então?

A ideia do plano de carreira pública é totalmente válida, uma vez que fixaria os médicos aos lugares menos favorecidos. Porém, juridicamente, há ainda o problema da competência constitucional para regular a matéria da saúde, uma vez que os hospitais públicos são administrados pelos Estados e Municípios, e não pela União. Quanto tempo demoraria para que todas as cidades tivessem um plano de carreira? Nesse meio-tempo, quantos miseráveis precisariam morrer por não ter um profissional que apenas diga por que eles estavam com febre e receitasse o remédio correto? Não obstante, é fácil prever que meso se adotada a medida, ainda assim os médicos, no mais das vezes, não serão atraídos a lugares esmos. O exemplo de São Paulo é eloqüente: recentemente foi instituída uma carreira pública com remuneração inicial superior a R$ 14 mil e mesmo assim não se preencheram as vagas disponíveis nas periferias e nas cidades mais afastadas. Pior, a mídia tem divulgado diversos casos de cidades muito longínquas totalmente bem equipadas e dispostas a pagar salários de quase R$ 20 mil, muito acima do "valor de mercado" do recém-formado, onde simplesmente não há candidatos ao trabalho. Não adianta se iludir e achar que a solução é só dinheiro. Não é.

E a solução de obrigar os recém-formados a ir aos locais onde não há médicos? Não parece uma boa solução, colocada dessa maneira, pois uma democracia não pode forçar, sob pena de sanções, pessoas livres a se deslocarem para onde não desejam ir. Seria uma espécie de serviço civil obrigatório, de notória inconstitucionalidade.

E dar ao médico que terminou a faculdade uma licença provisória e parcial para que apenas possa trabalhar na saúde pública por algum tempo, para depois exercer plenamente a profissão?

A questão, no fundo, é escolher se a Medicina será usada em benefício social ou se vai ser um mero instrumento mercantil de enriquecimento individual.

Pensemos no seguinte: por que é tão bonito que um médico recém-formado aceite ir trabalhar em uma região longínqua, sem ter disponíveis os confortos dos grandes centros, apenas pela satisfação de cuidar dos necessitados? Arriscaria responder que é porque se trata de um ato de cidadania e de solidariedade. Mas, ora, a cidadania e a solidariedade não são exatamente a base de uma sociedade mais justa e igualitária que se quer construir, em oposição à atual, baseada exclusivamente no individualismo, no consumismo e no dinheiro? Por que o Estado não pode adotar medidas para institucionalizar esses valores no acesso à saúde pública? Seria esse caso tão diferente de exigir que uma empresa cumpra sua função social, como determina a Constituição? Tendo a crer que não.

O Estado pode regulamentar os requisitos para a concessão do diploma. Há autorização constitucional para tanto no artigo 5º, inciso XII, da Carta Magna de 1988, segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ainda, no inciso XVI do artigo 22 da Carta há atribuição expressa à União para impor "condições ao exercício de profissões".

Com efeito, então, estabelecer como requisito para qualificação profissional o estágio na saúde pública, além ter autorização expressa no ordenamento jurídico, parece ser um eficiente mecanismo de efetivar o direito fundamental à saúde, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal. 

Outros cursos têm previsão de obrigatoriedade de estágio para a concessão do diploma, por que Medicina não pode ter? Nas faculdades de licenciatura, os alunos recentemente fizeram protestos e greves contra um programa do governo de SP que, por mais paradoxal que seja, diminuiu ou acaba com o estágio obrigatório, exatamente porque trata-se de uma etapa extremamente importante na formação do professor, cuja falta seria sentida na deterioração ainda maior da educação no Estado.

Dois valores estão em conflito aqui: de um lado o direito individual do médico-formando de utilizar os seus anos de estudos como ele bem entender e, de outro, o direito dos mais pobres de terem acesso à saúde. O Estado deve fazer o seu juízo de valor e decidir qual desses valores irá privilegiar. A medicina cidadã e social, voltada à saúde, ou uma medicina mercanitilizada, voltada ao dinheiro. É sintomático de uma sociedade enfraquecida que as pessoas se solidarizem muito mais com estudantes de medicina do que com as pessoas que adoecem e morrem por não terem acesso a médicos.

“Ah, mas o médico merece ganhar bem e ter o direito de escolher porque ele estudou para isso.” Outros profissionais de outros ramos também estudam até muito mais do que os médicos e recebem muito menos. Ofereça-lhes mais de R$ 10.000,00 por mês e, em geral, eles não vão trabalhar em qualquer canto do país. Por que a medicina tem que ser essa casta intocável? Porque o “mercado”, essa entidade inteligente, assim o deseja, já que ultra-valoriza esse profissional? Mais uma vez saliento, cabe ao Estado corrigir essas distorções anti-sociais do mercado. Ademais, seria uma situação temporária, vez que após recebida a licença definitiva vai ser perfeitamente possível o médico atuar, legitimamente ou não, apenas para o próprio enriquecimento.

A mensagem seria clara: “Esta sociedade não aceita que a Medicina, dado o seu essencial valor social, seja utilizada exclusivamente para fins particulares; para exercê-la, a pessoa tem o dever de colaborar solidariamente, ao menos um mínimo, com o acesso e direito à saúde dos demais cidadãos que se vêm apartados do sistema de saúde pública.”

O Estado, então, pode determinar que a licença definitiva do médico só será dada depois de realizado um período de trabalho nos lugares onde faltam médicos, ou seja, nas periferias e sertões do Brasil. Nunca é demais lembrar que, nos termos da Constituição Federal de 1988, nossa República tem como fundamento a cidadania e os valores sociais do trabalho (artigo 1º), além de ter como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a promoção do bem de todos e a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 4º), valores que no fim das contas, como já dito, coincidem com a motivação desejável do médico que se forma e vai, por puro idealismo, para os sertões do Brasil.

Penso, contudo, que o lugar onde esse serviço se dará deveria ser escolha do formando, mas se não houver vaga onde ele quiser, deve, então, esperar que alguma seja aberta, o que obviamente atrasaria a concessão da licença definitiva. Imagino, ainda, que deve haver atribuição de pontos extras nas provas de residência aos que forem para áreas distantes - já que a Medicina daqui é de culto à especialização, da qual a residência é uma etapa praticamente obrigatória (e nunca ninguém reclamou). Mais do que isso, em relação a áreas realmente críticas, deve haver uma redução no tempo de estágio, como incentivo a mais para que essas localidades sejam escolhidas.

Um dos efeitos colaterais benéficos dessa nova etapa de formação é que o médico recém-formado irá ter contato com as pessoas do mundo real, com seres humanos comuns, com os verdadeiros brasileiros, muito diferentes daqueles pacientes das clínicas particulares e dos casos escabrosos e incomuns dos hospitais universitários. Essa experiência é fundamental para o exercício digno e humano da medicina, totalmente conforme o juramento de Hipócrates feito por todos os médicos, que embora não tenha força jurídica, certamente possui grande valor moral.

Outros países já perceberam nessa obrigatoriedade um modo de efetivar a função social da Medicina e o direito fundamental à saúde de seus cidadãos. Suécia e Reino unido, por exemplo, países que consideramos democráticos, condicionam a licença para atuar como médico a dois anos de serviço obrigatório no sistema público de saúde.

Outrossim, o estágio obrigatório, nos moldes propostos, não se confunde com o vedado deslocamento compulsório ou serviço civil obrigatório, afinal, não há uma punição severa para quem não for trabalhar nos lugares determinados onde faltam médicos, sendo certo que a pessoa apenas sofrerá o dissabor de esperar mais para receber a licença definitiva, o que se encontra dentro das prerrogativas do Estado, como já dito. Quantos profissionais de outras áreas não são obrigados a migrar após se formarem, pois na região onde moram e fizeram o curso de graduação não há vagas na profissão que escolheram?

Por fim, em relação aos médicos estrangeiros, é muito positiva a ideia de criar uma prova diferenciada de revalidação de diploma, que confira licença provisória e limitada, para profissionais de outros países atenderem apenas na medicina básica e, ainda assim, nos lugares onde não há médicos. Afinal, todos sabem que o Revalida atual foi feito para reprovar, com perguntas extremamente difíceis e capciosas, que nada têm a ver com a medicina básica que falta nos interiores do país. O Brasil é um dos países onde há menos médicos estrangeiros, menos de 2% do total. Por que esse medo de abrir as portas aos profissionais de fora? Parece haver um excessivo protecionismo de classe. Diga-se, ainda, que se o argumento é que os médicos de fora precisam passar por uma prova difícil para proteger os pacientes de maus médicos (o que é perfeitamente justo), então, levando-se a ferro e fogo essa ideia de proteger os pacientes, teríamos que obrigar todos os médicos, brasileiros ou não, a passarem periodicamente por uma prova de dificuldade igual ao Revalida. 

Não seria mais simples, justo e produtivo criar uma nova prova remodelada para estrangeiros exercerem a medicina básica e preventiva? (Isso tudo para não dizer que há países desenvolvidos que sequer exigem alguma prova, bastando a comparação de grades curriculares para a concessão da licença para o médico trabalhar. No Canadá e Austrália, por exemplo, existe um exame de validação do diploma igual o Revalida, mas também há programas específicos que dão autorização especial para o médico atuar na áreas de maior carência de médicos.) Inclusive, pesquisas de opinião recentes mostram que, apesar dos esforços dos médicos para passar à população a ideia de que não faltam médicos e que os médicos estrangeiros são uma ameaça, a maioria apoia a vinda deles para onde os daqui não se interessam em ir.  

No meio tempo, obviamente, os governos devem fazer a sua parte: (i) melhorar as condições de exercício da Medicina, implementando infra-estrutura adequada, (ii) garantir que os profissionais, nesses locais distantes, tenham acompanhamento de profissionais já capacitados, como professores das universidades federais, (ii) revolucionar o currículo do curso de Medicina, para que dê ênfase na medicina humanista, preventiva e da família – com ênfase na pessoa humana do paciente-cidadão, através da interação e do diálogo médico-paciente, e não apenas na doença, nos exames e nos remédios – muito mais barata e eficiente para a melhoria da Saúde do que o modo mercantil atual, de ultra-especialização e concentração geográfica, (iii) ampliar radicalmente o número de vagas dos cursos de Medicina, com qualidade, (iv) implementar uma carreira pública de medicina, tal como a de juiz ou promotor.

Chegou a hora de ouvir a voz das ruas, que pediam melhoras na saúde pública. Os médicos têm o direito de se posicionarem contra medidas estatais que de alguma forma conflitam com seus interesses de classe, todavia, como restou demonstrado, a sociedade justa e solidária que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, pretende-se construir não dá respaldo a seus argumentos meramente individualistas; mais do que isso, o que toda a ordem social está clamando é que se efetive, a curto, médio e longo prazo, a função social da Medicina e, por consequência, o acesso e direito à saúde de todas as pessoas.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Financiamento público de campanhas já!

A grande mídia vai começar agora uma campanha contra o financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais. Nada mais previsível, já que ela própria se beneficia largamente dando dinheiro para políticos aliados se elegerem.

Mas vamos pensar um pouco sobre o financiamento privado de campanhas: Empresa não fazem caridade, então, por que financiam campanhas de políticos? Obviamente se trata de um investimento da empresa, que vai cobrar daquele político, se eleito, a aprovação de projetos que a beneficie, e não necessariamente que melhorem a vida dos cidadãos. Essa relação promíscua entre dinheiro e política é uma das grandes raízes da corrupção. E já que um dos grandes problemas do país é a corrupção, o financiamento exclusivamente público é um dos melhores antídotos.

Ou será que um Presidente da República financiado por um grande complexo de hospitais vai aprovar projeto de melhora da saúde pública? Ou será que o deputado que recebeu dinheiro das grandes indústrias farmacêuticas vai ser a favor à distribuição gratuita de remédios? Ou será que o Senador que recebeu doações de uma associação de escolas particulares vai ter interesse em melhorar a qualidade do ensino público?

Todos podem ter direito a voto, mas enquanto um candidato - por ter recebido fortunas, por exemplo, de construtoras, grandes indústrias, empresas de mídia, grandes bancos, igrejas – tiver centenas ou milhares de vezes mais dinheiro para realizar sua campanha eleitoral que outro, os votos vão ter pesos muito diferentes.

O financiamento privado de campanhas é uma fraude à democracia, pois, no fim das contas torna-se um modo daqueles que possuem mais dinheiro comprar o voto dos cidadãos mais pobres, que, em geral, por não terem a devida instrução e educação política ou crítica, acabam votando no candidato cuja campanha tem mais projeção, ou seja, os que receberam mais dinheiro e que possuem mais dívidas com as grandes empresas.

Em todo ano de eleição são jogados pelo ralo bilhões de reais que poderiam ser muito bem gastos em outras áreas com maior benefícios sociais. É certo que com o financiamento público esse montante vai diminuir muito e, apesar do dinheiro sair dos cofres públicos, o retorno em termos de diminuição da corrupção e de reais investimentos sociais dos projetos políticos, direcionados agora exclusivamente a beneficiar os cidadãos, não as grandes corporações, será infinitamente maior do que os gastos.


Financiamento público já!

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A loucura e o acordar


Certamente estaria internado por alguma doença mental o sujeito que há duas semanas afirmasse categoricamente que, ainda em junho:

- O preço da passagem de ônibus diminuiria em São Paulo e em inúmeras outras cidades pelo Brasil.

- O Haddad iria cancelar a licitação do transporte público e falar abertamente em estatização do transporte público.

- O Alckmin iria reduzir a tarifa do trem e do metrô, cancelar o aumento dos pedágios e prometer aumento do valor do auxílio-habitação.

- O Renan Calheiros iria defender o passe livre.

- O Joaquim Barbosa teria que vir a público dizer que não tem a menor intenção de se candidatar à presidência.

- O STF iria, pela primeira vez na vigência da atual Constituição, mandar para a cadeira um parlamentar em exercício.

- A PEC 37 seria arquivada.

- O Congresso aprovaria a destinação dos lucros do petróleo em 75% para a Educação e 25% para a Saúde.

- A Dilma iria chamar representantes dos movimentos sociais para conversar e mobilizar o Congresso para fazer plebiscito sobre a reforma política, tendo como pauta o financiamento público de campanhas.

- A Câmara dos Deputados aprovaria o fim do voto secreto para cassação de parlamentar e a corrupção como crime hediondo (tudo com apoio de Renan Calheiros).

- A Comissão de Constituição e Justiça do Senado iria aprovar a PEC contra o trabalho escravo, que confisca a terra daqueles que mantêm empregados em condições de escravidão.

- O imposto sobre grandes fortunas voltaria à pauta política.

- Todos veriam que a polícia não tem vocação ou treinamento para lidar com movimentos sociais e reivindicatórios.

- Em plena Copa das Confederações, milhões e milhões de pessoas sairiam às ruas protestar e o assunto mais comentado seria política.

- Senadores iriam estar trabalhando durante o jogo do Brasil.

- A Globo teria interrompido a transmissão da novela das 9 para televisionar protestos.

- Após tudo isso, a oposição se limitaria a dizer que a maquiagem da Presidenta é muito cara.


Talvez isso seja o tal “acordar” do povo brasileiro.

Sobre as medidas anunciadas pela Dilma

Medidas anunciadas e defendidas pela Dilma:

● Defesa da corrupção como crime hediondo, além de anunciar fortalecimento na transparência e punição severa a empresas envolvidas;
● Intimação a Governadores e Prefeitos para adiantarem e acelerarem a aplicação dos investimentos já contratados nos hospitais;
● Destinação de 100% dos royalties do petróleo para a EDUCAÇÃO;
● Maior ampliação de vagas de Medicina da história: criação de 11.447 novas vagas de graduação e 12.376 novas vagas de residência médica;
● Mais 50 bilhões de reais em mobilidade urbana e mais metrôs,
● Responsabilidade fiscal e controle da inflação;
● Criação do Conselho Nacional do Transporte Público com participação do POVO;
● Plebiscito para formação de uma constituinte sobre REFORMA POLÍTICA!

As medidas não são todas maravilhosas, ok, mas depois disso, se você continuar dizendo que a Presidenta não está agindo, que não liga para o que o povo está exigindo e que ela tem que se cassada, passo a ter certeza de que a coisa é pessoal mesmo.


(Postagem em 24.6.2013)

Pontos para reflexão sobre a Copa no Brasil

Pontos a se refletir antes de ser radicalmente contra a realização da Copa no Brasil:

- O orçamento total da Copa é de R$ 26 bi. Desse valor, R$ 16 biserão direcionados a investimentos de infra-estrutura, aeroportos, trânsito, mobilidade urbana, transporte público.
- Serão gastos R$ 7 bi com estádios para a Copa.
- O Governo Federal não bancará diretamente esse valor, mas vai sim financiar boa parte através do BNDES. Por informações do UOL (refutadas pelo Governo Federal), isso custará 1,1 bi aos cofres públicos.
- Com Saúde, o governo terá gastado ao final dos sete anos de preparos para a Copa, R$ 500 bi.
- Os investimentos no evento, segundo estudo da FGV, deverão movimentar R$ 142,39 bi na economia, gerando 3,63 milhões de empregos por ano e R$ 63,48 bi em renda para a população no período de 2010 a 2014.
- A arrecadação de impostos deverá ser acrescida de R$ 18,3 bi. O PIB brasileiro também terá impactos desse esforço da economia pública e privada.
- Sim, há problemas nas exigências da FIFA aos quais o Governo Federal deveria resistir em cumprir.
- Existem mesmo desapropriações exageradas, péssimas condições de trabalho dentre operários dos estádios, mas esse não é um problema exclusivo das obras da Copa, mas de qualquer obra estatal, basta ler os jornais.

Pense, faça as contas, reflita bem antes de sair por aí propagando desinformações. Conheça o problema primeiro, depois proponha as soluções.


(Postagem em 23.6.2013)

Sobre a aversão a partidos políticos

Esse aversão a partidos políticos só demonstra o quanto as pessoas são ignorantes e alienadas politicamente. PSTU, PSOL e PCO, apesar de terem defeitos como toda associação de indivíduos, sempre estiveram fazendo protestos por aí, defendendo as mais diversas causas dos trabalhadores e trabalhadoras do país. Você que "acordou" agora vai querer calá-los? Qual o problema deles apoiarem a manifestação do Passe Livre? Colocar esses partidos no mesmo saco que PSDB, DEM, PMDB, PPS é realmente a maior demonstração de burrice que alguém pode dar. Tá aqui seu diploma de retardado, reaça! Se for para fazer uma manifestação autoritária, que agrida militantes partidários, que fiquem em casa vendo novela e assistindo o jogo mesmo.
Os fascistas adoravam esse mesmo nacionalismo e anti-partidarismo que está aflorando nessas manifestações que pululam cada vez mais sem causa. Pronto, falei.


(Postagem em 20.6.2013)

Eu acordei

Eu acordei, sim, mas não foi agora.

Acordei quando estudei mais a fundo a História, sobretudo a partir do Século XVIII, quando a humanidade deu um basta ao poder absoluto do monarca e o colocou nas mãos da nova classe social ascendente, a burguesia, que desde então, embora tenha feito algumas concessões, nunca largou o osso.

Acordei quando percebi que o grito por liberdade deve ser necessariamente acompanhado pelo de igualdade, caso contrário serve apenas ao opressor.

Acordei quando vi que a “fraternidade” que os franceses tinham por lema em sua Revolução se transformou em “propriedade”.

Acordei quando passei a questionar as baboseiras que meus professores da faculdade diziam a respeito da imparcialidade do Direito, do caráter meramente “programático” das normas de direito social, da manutenção da ordem como valor em si.

Acordei quando notei que o Direito é apenas uma técnica de dominação como tantas outras que a elite usa para se manter no poder esmagando os mais pobres, que cinicamente se costuma chamar de “hipossuficientes”.

Acordei quando percebi que o poder econômico das grandes empresas engoliu o poder político, liberando caminho para devorar todo o resto.

Acordei quando me dei conta de que os relatos de exploração extrema dos trabalhadores à época da Primeira Revolução Industrial não estão, na verdade, nem um pouco longe de mim, pois presentes nas cabines dos ônibus e caminhões, nas tecelarias, nos frigoríficos, nos bancos, nas lojas de magazine.

Acordei quando me veio à luz que apesar do fim do feudalismo a sociedade continua, com raríssimas exceções, estamental e, sobretudo, estratificada.

Acordei quando ficou claro que os grandes veículos de mídia são podres, mostram apenas o que não lhes contrarie os interesses: manter a situação como está, alienando as pessoas e aumentando seus lucros, nunca formar ou informar devidamente o povo.

Acordei quando percebi que o filho da minha empregada sofria “batidas” pela polícia quase diariamente e eu, com vinte e poucos anos, nunca havia sido revistado.

Acordei quando me dei conta que um cortador de cana ou colhedor de laranja, que sofrem para pagar aluguel de um barraco e manter os filhos alimentados, trabalha muito mais do que a esmagadora maioria das pessoas do topo da pirâmide social, que compram jóias no Iguatemi numa tarde de quarta-feira.

Acordei quando percebi que o trabalho assalariado nada mais é do que a expropriação da força vital humana do empregado, que fica com o fruto do seu próprio trabalho.

Acordei quando passei a ver o mundo com os olhos das minorias - como os negros, os gays, os índios, as mulheres, os ateus, os moradores de rua -, que são diariamente violentadas de todas as maneiras e nós fingimos que não vemos, pois no fundo sabemos que nos beneficiamos da situação.

Esses são exemplos do que, para mim, significa acordar.

Dizer que acordou colocando de repente a culpa de todas as mazelas em entes abstratos como “governo”, “corrupção” e “altos impostos” é fácil. O buraco é muito mais em baixo. Eu quero é ver o gigante acordar de verdade.


(Postagem em 20.6.2013)

Paulas para os próximos protestos

Como o povo aprendeu a ir às ruas e parece animado para lutar por mudanças, fiz uma pequena lista com sugestão de 12 possíveis causas para os próximos protestos:

1) Pelos 10% do PIB para a Educação.
2) Pela desmilitarização da polícia.
3) Pela tarifa zero no transporte público de todo o país.
4) Pela redução da jornada de trabalho máxima para 40 horas semanais.
5) Pelo fim dos suplentes não eleitos no Senado Federal.
6) Pela aprovação da PEC do combate ao trabalho escravo (que confisca terras de quem escraviza)
7) Pelo financiamento exclusivamente público em campanhas eleitorais.  Pela instituição do imposto sobre grandes fortunas e correção da tabela de imposto de renda até uma alíquota de 50% para os mais ricos.
9) Pela saída imediata do Deputado Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
10) Pela não aprovação do Acordo Coletivo Especial, que flexibiliza as leis trabalhistas e precariza o trabalho, e pela ratificação da Convenção 158 da OIT, que veda dispensa arbitrária e/ou sem justa causa.
11) Pelo fim da unicidade sindical e da contribuição compulsória e pela ratificação da Convenção 87 da OIT, que garante a liberdade sindical.
12) Pela limitação progressiva dos juros bancários até que, nos próximos 10 anos, se proíbam taxas acima de 12% ao ano.

Com essas pautas, evita-se que o pessoal mais conservador consiga convencer alguém de que a transformação do País virá com o impeachment da Dilma (eleita por vasta maioria e com índice de aprovação record), com a redução de impostos (o que impaca o Brasil são os maus investimentos), ou com o cancelamento da Copa (cujos gastos são pequenos em relação às demais rubricas orçamentárias), etc.

A luta continua, mas nunca com pautas reacionárias!


(postagem em 19.6.2013)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Sobre a manifestação de 18 de junho de 2013 - A Revolta dos 100.000

Eu estava lá ontem, dia 18 de junho de 2013.

O povo na rua, a indignação, os gritos de guerra, os cartazes, tudo aquilo é extremamente contagiante. As pessoas se sentem parte de algo que, de fato, está construindo a história.

Vi milhares fazendo reivindicações sobre os mais diversos temas. Desde o passe livre, até a legalização da maconha, a volta da ditadura militar e mesmo o fim do capitalismo.

Vi gente cantando contra a PM, contra o Governador, contra a Presidente, contra a Rede Globo, contra a Veja, contra o Arnaldo Jabor, contra o Datena e a grande mídia em geral.

Vi uns agitadores passarem acelerados gritando que “o choque” estava batendo em manifestantes “lá na frente”, o que estava longe de ser verdade. São idiotas como esses que, antes de quinta feira passada, arruinavam a causa.

Vi o povo gritando contra as bandeiras de partidos políticos.

Vi pessoas idosas no meio da marcha, mostrando que a utopia não é um lugar exclusivo dos jovens.

Vi meu professor da Faculdade de Direito da USP e Desembargador Federal, gritando com a galera.

Vi, é verdade, mais playboy do que gente realmente pobre. Um cínico poderia dizer que a “gente diferenciada” da favela parece que não foi pra rua e ficou vendo a pela televisão o “povão” de Higienópolis.

Senti, enfim, uma sensação muito boa, pois tudo aquilo era maravilhoso, afinal, algo estava mudando, o povo estava reaprendendo a tomar as ruas para lutar.

Todavia, recuperada a razão, é hora de analisar friamente os fatos. O que de fato aconteceu ontem?

A meu ver, deve-se tomar muito cuidado para que o protesto não seja mais contra o “governo” como uma entidade abstrata do que pelo passe livre. O protesto não pode ser contra tudo, pois, no fim das contas, se for assim ele se torna contra nada. As pautas devem ser específicas. Gente falando de impeachment da Dilma, gente protestando contra a corrupção, contra os altos impostos, contra a criminalidade. Pára! Legal mostrar a indignação, mas o protesto não era contra nada disso! Era contra o aumento do preço da passagem e a favor à tarifa zero! Democracia é assim que se faz. Protestando por uma ou alguma causa de cada vez.

No caso das manifestações de ontem, a mensagem deve ser absolutamente clara: enquanto o valor da tarifa não baixar, o povo não vai sair das ruas. Uma estratégia muito simples e milenar. Vencendo essa batalha, que venham as próximas, contra a PEC 37, a favor aos 10% do PIB para a Educação, pela desmilitarização da polícia, pela saída do Feliciano da CDHM-CD, pelo financiamento público de campanhas, pela instituição do imposto sobre grandes fortunas, etc.

- Ou alguém acha seriamente que a Dilma vai renunciar? Ela foi eleita por vasta maioria e, pelo que consta até agora, não há nenhum indício de que tenha cometido qualquer ilegalidade que pudesse dar ensejo à cassação de seu mandato.

- Ou alguém acha que o Renan Calheiros, o Paulo Maluf e o José Sarney vão parar de roubar o povo porque este “se cansou” e saiu às ruas protestar genericamente contra a corrupção? Por isso tem que dar nome aos bois. “Protestamos pela saída imediata do Renan Calheiros, do Paulo Maluf e do José Sarney!” e não algo genérico e fluído como “estamos cansados de tanta corrupção”. É o mesmo que fazer um protesto contra os estupros. Quem é realmente favorável ao estupro? Corrupção é, usando o clichê eloquente, a ponta do iceberg.

- Ou alguém acha que o governo vai diminuir os impostos por que houve protestos? O problema do Brasil não é nem nunca foi o valor dos impostos. O problema é que o sistema tributário cobra, em proporção, muito mais dos pobres do que dos ricos, mais do trabalho do que do capital. Os ricos, que são beneficiários da exploração dos mais pobres devem mesmo pagar altos valores para compensar a sociedade pela exploração que promovem. Pagar imposto faz parte dos mecanismos de redistribuição de renda e de promoção da igualdade material na sociedade. Além disso, cobram-se altas taxas, mas não há o devido retorno em serviços públicos de qualidade. E por que não sobra dinheiro para investir? Sim, uma das causas é a corrupção pura e simples, mas a outra é porque TRILHÕES de reais por ano são usados para pagar a dívida aos bancos, os mesmos responsáveis pela crise mundial que abate o mundo desde 2007/2008. Se o Estado deixa de investir em educação, saúde, segurança e, pasme, transporte público, por exemplo, alegando que não tem dinheiro, é porque se comprometeu com banqueiros nacionais e internacionais a economizar recursos para quitar as suas dívidas (superávit primário). A corrupção é um ralo dos cofres públicos, mas não o único e nem o mais importante.

- Ou alguém acha que os delinqüentes vão parar de assaltar, matar, estuprar porque estão fazendo protesto “contra a criminalidade”? Ou alguém acha que aumentando as penas, reduzindo a maioridade penal e aumentando a repressão e autoritarismo da polícia a criminalidade vai baixar? A história e a sociologia mostram de forma clara que o problema da violência é só um sintoma, cuja doença deve ser tratada na base. Educação crítica, distribuição de renda, serviços públicos de qualidade, investimentos em artes, esporte e cultura, tudo isso diminui os índices de violência, não medidas eleitoreiras e imediatistas.

Outros fatos merecem críticas. Qual é o problema de subir bandeiras partidárias no meio do protesto? Vi manifestantes erguendo bandeiras do PSOL e outros gritando para que elas fossem baixadas. Há relatos de violência contra um membro do PSTU. Peraí de novo! Faz parte da democracia que entidades se apóiem mutuamente. Democracia é o povo na rua, ok, mas também passa pelos partidos políticos, que podem livremente apoiarem as causas. São os partidos que historicamente, desde sempre, defendem institucionalmente os interesses dos seus representados. No caso do PSOL, PSTU, PCO, etc., sempre são eles que estão lá batendo panela na Av. Paulista. Agora vem um grupo apolítico que “acordou” e aprendeu a protestar ontem querendo impedi-los de fazer o que sempre fizeram! Absurdo. Felizmente isso não se generalizou, pois em outros pontos da quilométrica manifestação os partidos tiveram a liberdade de hastear suas bandeiras e se mostrar como apoiadores.

Confesso que vi muita gente protestando por modismo, porque a mídia passou a apoiar a luta depois de registrar a violência gratuita da PM. Não sei se era a maioria, prefiro acreditar que não. Mas fico me perguntando quantas daquelas dezenas e dezenas de milhares de pessoas estariam realmente dispostas a viver na utopia, a perder privilégios em prol da distribuição de renda e da igualdade e justiça social.

Aparentemente, aprendeu-se que manifestações de rua são positivas. Mas ontem a causa foi simpática a todos, mas e quando se estiver discutindo algo mais controverso, como o aborto ou a legalização da maconha? Será que o direito de se manifestar vai ser bem visto e devidamente respeitado, como valor constitucionalmente assegurado que é?

Percebo que a elite, (tele)guiada pela Globo e pela Veja, está nitidamente querendo se apropriar do movimento para esvaziá-lo, colocando em pauta qualquer causa, inclusive as causas erradas, como as que eu citei acima, corrupção, criminalidade, impeachment e alta de impostos.

Isso não significa, todavia, que a manifestação foi em vão. Não foi. De fato, história foi feita ontem. O Congresso Nacional está discutindo a pauta do transporte público, o Haddad está cogitando ceder, diversas cidades já tiveram aumentos revogados ou cancelados no transporte público. A mídia passou a se referir aos vândalos como minoria radical, e não mais pretendendo generalizar as atitudes violenta a todos os manifestantes. Ainda, as pessoas de fato reaprenderam que democracia é também ir para a rua, e não apenas apertar uns botõezinhos de dois em dois anos. Dane-se o trânsito se o que se discute é um direito maior, e isso deve entrar na cabeça das classes baixas: a rua também é de vocês, os direitos também são de vocês. Por fim, a PM de São Paulo aprendeu que protesto é ato de cidadania e que só excessos extremos devem ser reprimidos, não o movimento em si.

O saldo é positivo, e, apesar dos pesares, continuo orgulhoso de ter feito parte de algo tão grandioso.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Manifesto das manifestações


Sou assumidamente um otimista e, apesar de alguns acontecimentos lamentáveis, acho triste que nem todo mundo perceba o quão maravilhoso é o que está acontecendo em São Paulo e em outras cidades, com os protestos contra o aumento do valor da passagem de ônibus.

A pluralidade se mostra como nunca e as ideologias despontam:

(a)    Aquele mesmo cara que reclama da alienação dos jovens, que “hoje em dia não lutam mais por nenhuma causa”, se enraivesse contra os “baderneiros” que fazem “arruaça” e atrapalham o trânsito.

(b)   O outro, que é um pouco mais politizado, fica irritado porque os protestos deveriam ser a respeito de outros fatos, como a corrupção ou a falta de investimento em educação, como se ele estivesse mais apto que o próprio povo para escolher a razão certa para ir às ruas lutar.

(c)    O conservador, segundo o qual toda a esquerda é comunista e comunistas comem criancinhas, brada aos quatro ventos que é uma manifestação ridícula e violenta, afinal, o preço do ônibus teria subido abaixo da inflação, poucos centavos, e “o que são poucos centavos?”, nem passando pela cabeça dele que para quem recebe um salário mínimo, ou mesmo pouco mais do que isso, aquele valor é a diferença entre refeições que serão ou não feitas ao longo do mês.

(d)   O pró-governo que é a favor de manifestações populares, abstém-se do debate ou procura achar que tudo é obra de uma minoria oposicionista que arranjou um jeito de destruir a popularidade do governante, que não se comove, e nem deveria, diante do clamor da multidão.

(e)   O bom e velho social-democrata, aquele que procura obstinadamente sempre o meio-termo, afirma que os protestos são legítimos, MAS se atrapalhar o direito de ir e vir alheio e houver atos de vandalismo por parte dos manifestantes (nada diz a respeito da truculência da polícia), o movimento deve ser sim reprimido “pela força da lei”.

Assinalou alguma alternativa?

Enfim, o que não se pode negar é que esses protestos, mesmo que não atinjam o objetivo final de reduzir a tarifa do transporte público a zero e nem mesmo de impedir o aumento recente, já são um sucesso.

Sim, porque mostra que as pessoas estão reaprendendo a ir às ruas e lutar pelo que acham certo.

Sim, porque o povo está reaprendendo que democracia não se resume a votar de dois em dois anos e que política não se faz só nos gabinetes dos chefes de governos, mas nas ruas.

Sim, porque deixa claro quem tem interesse em ver o povo caladinho assistindo à novela e ao jogo e quem realmente quer um povo politizado que sai às ruas quando se sente injustiçado.

Sim, por mostrar que as pessoas apóiam sim, como indicam as pesquisas, protestos, e inclusive com baderna, se necessária para responder aos desmandos da polícia e do Estado.

Sim, porque mostra que o direito de ir e vir de quem é prejudicado pelo trânsito causado pelas manifestações não é, nunca foi e nunca será mais importante do que o direito de ir e vir das pessoas que utilizam o transporte público por falta de opção e que, quando o preço aumenta, se vêm obrigadas a sacrificar maior parte de seu já minguado orçamento para simplesmente chegar ao trabalho ou a outro ponto da cidade onde queiram ou precisem ir.

Sim, por evidenciar que as pessoas não vão se resignar e assistir passivamente que os impostos pagos não se traduzam em serviços públicos de qualidade.

Sim, porque faz transparecer o quanto a grande mídia é hipócrita de mostrar os protestos que ocorrem em outros países como algo positivo, trazendo à luz informações da perspectiva dos manifestantes, chamados de “ativistas”, que dão a cara a tapa e querem mudanças, enquanto as nossas manifestações, que acontecem nas ruas em que passamos todos os dias, são colocadas pelos como um câncer a ser extirpado a qualquer custo, pois são acentuados apenas os pontos fracos, os atos impensados de uma minoria que apenas quer radicalizar, de modo a transformar todos em vândalos, deixando claro de que lado essa mídia podre realmente está.

Sim, porque daqui para frente os governantes vão pensar senão duas, três, dez, um milhão de vezes, sob pena de criar um problemão e colocar a própria popularidade em cheque, antes de encarecer e dificultar o acesso dos mais pobres aos serviços públicos básicos, como é o caso do transporte (em Campinas, Natal, Porto Alegre e Goiânia, por exemplo, os prefeitos, com medo de manifestações, desistiram de aumentar o valor da passagem).

Sim, porque deixa em parafuso aquele que criticava as massas no Brasil por não terem voz, mas agora, quando elas recuperam o grito perdido, atrapalhando a volta para a casa depois de um longo e estafante dia de trabalho, no fim das contas percebe que os interesses dele dependem da alienação e da passividade agonizante do povo, qualidades que ele antes criticava.

Sim, pois os registros documentados das forças policiais batendo em manifestantes e jornalistas escancaram o quanto a polícia, que sequer tem preparo adequado para conter delinqüentes, não está apta para lidar com movimentos sociais e manifestações legítimas do povo no espaço público, servindo apenas aos interesses dos poderosos, ávidos por manter a situação como está, da qual extrai seu poder.

Sim, porque todos vêm que os argumentos formais dos reacionários são fracos diante da realidade, afinal, fica nítido quanta burrice há por trás de pensamentos como o de que se alguns manifestantes cometem atos de vandalismo, então, todo protestante é vândalo, mas se alguns policiais cometem abusos, agindo de forma truculenta, agredindo gratuitamente os participantes do movimento, prendendo pessoas que portavam garrafas de vinagre (que reduz os efeitos de gás lacrimogênio) e alvejando manifestantes de joelhos e jornalistas com tiros de borracha, esse é um problema pontual que não pode ser generalizado para toda a polícia.

Sim, porque a falácia de que o aumento da passagem se deu abaixo da inflação é desmascarada, pois se realmente não tivesse havido aumento real acima da inflação de 1994 para cá, a passagem de ônibus em São Paulo custaria no máximo R$ 2,16 e a de metrô, R$ 2,59.

Sim, por nos mostrar que um novo paradigma de transporte público, e por que não dizer?, de serviços públicos em geral, é possível se houver vontade política.

Sim, por deixar claríssimo que a “Primavera Brasileira” é possível

Sim, por tornar incontestável que ainda faltam muitos protestos como esses para vivermos em algo que se possa realmente chamar de democracia.

Cabe, agora, a cada um de nós, especialmente aos jovens, decidir se esse momento será levado aos livros de História em um enorme e fascinante capítulo ou em uma frustrante nota de rodapé.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Passeio no zôo ilógico


Estava em um restaurante onde as paredes tinham enormes janelas de vidro. Em determinado momento, percebi que, na verdade, se tratava de uma redoma de zoológico e os animas nos viam de fora, observando atentamente aquelas cenas a fim de conhecer melhor nossa espécie.

De pronto, os bichos ficaram maravilhados imaginando que éramos muito pacíficos e civilizados, afinal, além de nos equilibrarmos apenas sobre duas patas, algo raro em bichos sem asas, não havia nenhum tipo de desordem ou agitação naquele ambiente, que parecia um lugar agradável para todos.

Apesar de sermos muitos humanos lá dentro, cada um de nós interagia apenas com quem estava próximo, os mesmos com quem se dividia a comida. Não devíamos ser uma espécie muito sociável. Aqueles que não comiam, nitidamente estavam esperando a comida chegar, sempre distraídos com um objeto retangular que ora era apertado freneticamente, ora ia para uma das orelhas, algumas vezes era mostrado para quem estava ao lado, raramente era deixado de lado. Os gatos mais sábios se identificaram e perceberam que aquela coisa seria equivalente aos novelos de lã. Quem comia, mal olhava para o lado e interagia ainda menos com os outros.

Mas um fato chamou muito a atenção dos visitantes. Havia alguns humanos que ficavam em pé o tempo todo, vestindo roupas idênticas entre si, apenas servindo os outros humanos que permaneciam sentados e comiam. Aquilo era muito intrigante. O que teria levado àquela situação estranha, em que uns apenas serviam e outros apenas comiam?

As formigas, que já nascem operárias, soldados ou rainha, imediatamente disseram ser uma predeterminação natural, mas os demais bichos protestaram, afirmando que aqueles humanos eram todos muito parecidos para estarem diferenciados biologicamente desde o nascimento. Os cachorros sugeriram que havia um acordo entre as partes, em que livremente uns aceitam servir e outros aceitam ser servidos. Improvável, refutaram os outros. Aquela espécie era de humanos, não de burros ou jumentos. O abutre, então, demonstrou plena convicção de que se tratava de uma imposição dos que são servidos, que por alguma razão têm poder para forçar os que servem a servirem, sob pena de ficarem sem comida. Não, essa última hipótese estava descartada para os demais, pois aquela espécie era notoriamente muito civilizada para um sistema tão rude de sobrevivência.

Após longas discussões, os visitantes, desde a menor das aranhas até a mais gigante baleia, chegaram a um consenso de que os humanos fazem uma espécie de revezamento da seguinte maneira: em uma parte do tempo um grupo serve e o outro é servido; em outra parte, as funções dos grupos se invertem; na parte do tempo que sobra, muito maior do que as duas outras, todos descansam, se divertem ou fazem o que mais lhes agrade. Dessa forma, não falta nada para ninguém e todos, sendo verdadeiramente livres, aproveitam o tempo para existir em sua plenitude. Essa hipótese era, definitivamente, a mais provável, já que aquela espécie maravilhosa realmente parecia ser muito superior, esperta e organizada. Apenas o abutre, com seu faro implacável, continuava desconfiado.

Os animais que haviam nos estudado em outras redomas e conheciam melhor nossos modos de vida, ou se indignavam, ou não conseguiam conter o riso diante da ingenuidade dos demais. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Década de 70 - Tempo de ultra-criatividade

Conhecer bandas como Secos e Molhados, Os Mutantes e Novos Baianos me faz querer muito ter vivido a década de 70, só para ver tudo acontecendo, esses caras dando a cara pra bater, pouco se lixando para o que as gravadoras queriam e sendo originalíssimos, colocando em prática de forma sublime a Antropofagia brasileira pretendida por Oswald de Andrade e seus contemporâneos já na década de 20.

Porém, penso na possibilidade de ter passado ileso a tudo aquilo, absorto ouvindo apenas os "tremendões" da Jovem Guarda alienada ou a música americana da época, que culturalmente pouco nos dizia respeito. Será?

Meu medo é que hoje eu esteja obtuso e deixando passar despercebidos, por ignorância e preguiça, artistas tão ou mais geniais que aqueles guerreiros pretéritos, até pelo fato da grande mídia só ofertar ao público artificialidades que imediatamente se transformam em vultuosas cifras.

Difícil pensar que daqui a uns 40 anos é possível que alguém inveje a oportunidade que eu estou tendo, aqui e agora, de viver exatamente tudo o que não estou vivendo.

De qualquer forma, não me canso de ouvir, além das bandas já citadas, Raul, Tom Zé, Jorge Ben, Tim Maia, Chico, Gil, Caetano, Raul, Rita Lee, Elis, Ney, Renato Teixeira, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, enfim, toda essa gente que desbravou o caminho para tudo que temos hoje, vivendo de algum modo o espírito pulsante revolucionário daquela época, que apesar dos muitos pesares, tinha diversos encantos.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Parabéns!


Se você acha que a sua raiva ou o seu medo não justificam uma injustiça, parabéns, você é a favor aos direitos humanos individuais.

Se você acha que o seu conforto não justifica a miséria alheia, parabéns, você é a favor aos direitos humanos sociais.

Se você acha que as cadeias estão lotadas demais e que por isso deve-se encarcerar apenas aqueles que cometem os crimes mais graves, parabéns, você é a favor do direito penal mínimo.

Se você acha que os trabalhadores devem correr atrás de melhores condições de vida por diversos meios lícitos, parabéns, você é a favor ao direito de greve.

Se você acha que o Estado deve intervir para proteger a parte mais frágil nas relações sociais, parabéns, você é tão contra o fim do direito do consumidor, dos idosos e das pessoas com deficiência quanto contra a flexibilização do Direito do Trabalho.

Se você acha que as crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento, devendo ser integralmente protegidas, e que é dever do Estado garantir todas as condições para que eles sejam devidamente educados e tenham um crescimento saudável, parabéns, você concorda com o ECA e, se refletir um pouquinho mais, será contra a redução da maioridade penal.

Se você não acha nada disso, volte urgentemente a ler a sua Veja.

Juristas "pró-trabalhador"


Observando algumas colocações de determinados juristas, eu chego a concluir que ser "pró-trabalhador" é apenas uma moda, uma tendência a ser seguida para não ficar para trás, pronta para ser revertida se os ventos passarem a apontar outra direção. Como se o verdadeiro intuito de entendimentos jurídicos que protegem a parte mais frágil nas relações sociais, a elevação da condição social e humana, fizesse parte apenas da retórica, não fosse algo a ser verdadeiramente aplicado e, mesmo que aos pouquinhos, conquistado.

Preferia acreditar que essas contradições fazem parte do próprio ser humano, mas, refletindo melhor, não sei mais se é bem assim. A pensar.

Esquerdismo e doença


Um amigo muito preocupado com a minha saúde me enviou um estudo afirmando que o esquerdismo é uma doença mental.

Em um primeiro momento, achei bom que esse estudo tenha atrasado tanto, pois se essa descoberta tivesse sido feita há alguns séculos, resultando em confinamento generalizado de esquerdistas em manicômios, estaríamos presos para sempre em algum ponto da Idade Média ou, no máximo, do Absolutismo Monárquico. Certamente ainda teríamos (ou seríamos) escravos, as mulheres seriam submissas, e ainda seria plenamente aceitável a exploração do trabalho exaustivo e desumano, de crianças e adultos. Falo em causa própria, inclusive, pois antes das lutas das esquerdas os doentes mentais, como eu acabo de me descobrir, eram degredados, espancados, torturados e mortos. Ufa!

Mas em relação ao estudo em si, nenhuma surpresa. Viver em um sistema absolutamente individualista se colocando em tempo integral no lugar do outro, do invisível, do mais frágil, daquele para quem a sociedade insiste em negar a condição humana, enfim, das minorias em geral, sempre analisando criticamente as causas e consequências sociais de cada dado da realidade, só poderia mesmo ser doença.

Afinal, como se observa por aí, normal mesmo é apoiar as grandes corporações monopolistas e as políticas de concentração de renda, achar que a ditadura militar brasileira não cometeu atrocidades, acreditar que os médicos cubanos, que prestam auxílio humanitário com sucesso pelo mundo inteiro, irão concretizar uma revolução comunista por aqui e concluir que programas sociais e a legislação social geram “vagabundos” e “aproveitadores”, mesmo que os fatos demonstrem precisamente o contrário a tudo isso. Minha doença é tão grave que me impede de invejar essas mentes sadias.

Aliás, devo estar em fase terminal, pois fiquei pensando no quão positivo seria se essa doença fosse infecto-contagiosa, afinal, contaminando todas as pessoas do mundo, talvez não teríamos mais tanta exploração do homem pelo o homem, tanta dominação, miséria, violência, desigualdade e injustiça. Não é o caso, infelizmente... O modo mais comum de contraí-la é observando acuradamente a realidade, pensando, conversando, contestando, discutindo, refletindo, lendo, estudando de forma mais aprofundada as ciências humanas em seus diversos ramos.

Claro que esse estudo que meu amigo me enviou apenas maquia de pseudo-argumentos técnicos o bom e velho mantra do “se você não concorda com a minha visão de mundo, obviamente a única correta, você só pode ser louco”, tendo sido provavelmente concebido para de alguma forma responder a diversos outros trabalhos que concluem serem os esquerdistas mais inteligentes ou que afirmam ter o conservadorismo caráter patológico, os quais, por sua vez, também têm questionável credibilidade científica.

Mas em todo o caso, eu, agora um doente convicto, fiquei contente em saber que sempre que eu acordar “de esquerda” poderei obter um atestado médico e faltar do trabalho; também terei direito a prestar concurso público dentro da quota para pessoas com deficiência; por fim, poderei estacionar o carro nas vagas para deficientes e ser atendido nos caixas preferenciais, sempre ganhando tempo para gastar com as ideias que me ocorrem devido a essa assustadora doença da qual sou um portador em estágio avançado, que me faz acreditar em absurdos como a emancipação humana face a qualquer tipo de dominação e a vitória da solidariedade sobre o egoísmo.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Maioridade


No fundo a gente simplesmente não gosta dos menores infratores por saber que eles são parte de nós mesmos, fruto de toda a história que nos levou a ser o que somos, incluídos, e os levou tornarem-se o que viraram, excluídos.
Reduzir a maioridade, certamente, é a solução mais fácil e simbólica para dizer "Não aceitamos mais que menores cometam crimes!" Mas alguém realmente aceita?
Em vez de criticar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dizendo que ele "protege demais" e permite que jovens cometam crimes impunemente, não seria melhor de fato aplicar as disposições dessa lei, que visam a garantir o desenvolvimento pleno e saudável da criança e do adolescente, integrando-os à sociedade antes, mas também depois, de infringirem a lei? 
E, pior, alguém realmente acha que faz alguma diferença para o jovem que está na criminalidade se ele vai para a Fundação Casa (nome diferente da antiga FEBEM) ou para a cadeia comum?

Danuza Leão reinventa leis trabalhistas


Impressionante a coluna de Danuza Leão da semana passada na Folha, relatando o caso de uma amiga que dispensou uma empregada doméstica que trabalharia das 16h às 21h. Motivo: não queria pagar o adicional noturno.
Impressionante não pela doméstica, que já deve ter achado outro emprego, mas pela patroa, que sequer teve o trabalho de buscar no Google sobre esse adicional para saber que ele só é devido depois das 22h.
Nada que não se espere de quem vive dedicando seu espaço semanal no jornal a humilhar os mais pobres.
Mas é triste ver o quanto a mídia desinforma sobre os temas que lhe convém manter nebulosos.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

O (neo)Liberal


Parte do pensamento econômico de hoje tenta resgatar o pensamento liberal de Adam Smith. Seus propugnadores sentem-se ofendidos com o uso do termo "neoliberalismo" para definir a aplicação de uma nova teoria de cunho liberal na economia política a partir do final da década de 70, impulsionada pela atuação incisiva de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, que, justificando-se pelo novo liberalismo de Hayek e Friedman, implodiram o Estado de Bem-Estar Social.
A definição de social que os liberais usam é a da voluntariedade, da autonomia. Sempre que há autonomia e liberdade individual, há sociedade. Certamente esqueceram-se de ler o clássico da literatura “Robinson Crusoé”, o que lhes permitiria perceber que o conceito que têm de sociedade é precisamente a definição de indivíduo. Social relaciona-se a solidariedade entre as pessoas, sendo, assim, o oposto da individualidade.
Os liberais argumentam que a ideia de Estado está equivocada e é imoral porque se trata de coerção, de armas apontadas determinando às pessoas o que fazer. O indivíduo só age de determinada maneira por estar sob a mira da arma do Estado. Ou seja, o pressuposto é que o uso da força é ilegítimo em qualquer situação. Porém, fico me imaginando a posição do liberal quando ele, de posso de uma arma, depara-se com alguém prestes a matar um inocente. Não seria o caso de usar a arma exatamente para acabar com a opressão e libertar o oprimido?
Ignorando todo o conhecimento das demais áreas do conhecimento de humanidades, esses liberais afirmam que os monopólios só o são porque satisfazem os consumidores (ideia que a própria Economia já refutara há tempos, pois um ente poderoso de mercado, detendo mais conhecimento do que os menores, vai inevitavelmente lesar a livre-concorrência e submeter os seus rivais).
Mas e se o monopólio for tão intenso que atinja dos produtos primários aos supérfluos? Aliás, em tese, o monopólio de qualquer segmento irá desembocar em monopólios de vários deles, que irão recair em monopólio de todos os produtos, inclusive de produtos básicos, como alimentos, educação, saúde, comunicação e transporte. Afinal, os entes econômicos agem, na maior parte das vezes, racionalmente, e dominar todos os mercados, do ponto de vista econômico, é sem dúvidas o mais lógico a ser feito.
Ademais, sem o Estado, o que garantiria o cumprimento dos contratos e a própria propriedade privada? O Estado é formado por seres humanos investidos de poderes públicos. Existindo uma contenda entre um contratante e outro ou entre um proprietário e um não proprietário, um ser humano vai decidir quem está com a razão, e, com isso, vai aplicar a lei conforme a tenha interpretado, tendo em vista toda a sua carga cultural e visão de mundo. Não existe aplicação neutra das leis, assim como não existe neutralidade na Economia.
A meu ver, o problema não é o Estado em si, mas quais interesses o Estado representa, afinal, de fato, os governos são formados pela classe dominante. Se o Estado for pensado para efetivamente construir uma sociedade solidária, do ponto de vista dos interesses do povo e dos trabalhadores, não das grandes empresas, o seu fortalecimento é o único caminho viável para a justiça social e a conquista da igualdade material.
Ainda, a cruzada da liberalização tem uma contradição intrínseca. Quanto mais a força do Estado vai diminuindo, mais são os detentores do poder econômico que restam no seu comando. Afinal, o poder que era do Estado vai parar em algumas mãos, que, no caso, por estarem liberadas as amarras anti-predatórias, são as das grandes corporações, que já antes possuíam imenso poder. Para a aplicação do liberalismo puro seria necessária uma empreitada revolucionária.
Com efeito, não é à toa que o liberalismo é defendido por grandes bancos, privados e governamentais, pelas grandes corporações que já detém monopólios ou oligopólios, pelos bilionários e etc., porque eles sabem que a desregulamentação progressiva só vai acarretar mais concentração do poder econômico. Aplicando a Lei de Lavoisier, segundo o qual nada se cria, tudo se transforma, o poder que se retira do Estado será canalizado para algum lugar, e pelo próprio raciocínio econômico chega-se à conclusão de que cairá nas mãos de quem já detém o grande poder econômico. Ou seja, os neoliberais apenas instrumentalizam a teoria liberal, que de fato é muito bonita e sedutora ao propor a liberdade como valor humano único e supremo (como se a liberdade só ela pudesse garantir outros valores no mínimo igualmente importantes, como a igualdade), para perpetuar, senão aumentar, seu poder econômico e social.
Ademais, o liberalismo puro presente durante a Revolução Industrial mostrou que as consequências sociais da falta de regulamentação do capital são catastróficas.
O argumento de que nunca se viu uma sociedade capitalista totalmente liberal, sem qualquer interferência do Estado e que não devemos deixar de almejá-la porque não sabemos se vai ou não dar certo, tal como antes havia resistência à abolição da escravatura, é completamente falacioso. Afinal, valeria para tudo o que se imaginasse. Em vez de falar “Está errado dizer que o liberalismo pleno será ruim, afinal, antes de se libertarem os escravos também havia resistência e hoje se sabe que a escravidão é algo terrível” poderíamos falar qualquer coisa, inventando qualquer tipo de sociedade, por exemplo “Está errado dizer que uma sociedade regida exclusivamente por polvos adivinhos será ruim, afinal, antes de se libertarem os escravos também havia resistência e hoje se sabe que a escravidão é algo terrível”. Ou seja, ao se vislumbrar uma sociedade e um sistema socioeconômico melhor, deve-se ter em mente não só as experiências passadas (no caso do liberalismo pleno, a Primeira Revolução Industrial chegou bem próximo a ele), mas também deve-se pensar no que as teoria e abstrações teóricas nos mostram a respeito, não somente de um único e exclusivo ramo do conhecimento, como a Economia, mas levando-se em conta o que diversos ramos das ciências humanas, e mesmo biológica, tem a nos dizer, como por exemplo as Ciências Políticas, a Sociologia, a História, a Antropologia, a Filosofia, a Psicologia, o Direito, a Geografia.
Em um modelo ideal de sociedade devemos levar em conta alguns fatores. É bom que as pessoas se ajudem? Seria bom que o grande fator de coesão social fosse a solidariedade humana, com as pessoas ajudando-se umas às outras? Ou o melhor é um sistema que tenha lastro exclusivo no individualismo puro e simples, o “cada um por si”, vendo com maus olhos qualquer tipo de ajuda social de uns para com os outros, taxando a  assistência ao desamparado como algo sempre abominável?
O que os liberais parecem não querer admitir é que liberdade sem igualdade é simples dominação.
Os liberais sinceros acreditam mesmo que a teoria liberal é válida e, mais do que isso, que se trata da solução para as mazelas da sociedade. E o fazem porque ignoram que a economia não só sofre interferências como tem a própria sorte determinada por fatores externos a ela, interesses dos mais diversos, sobretudo sociais e políticos. E isso não vai mudar, pois o sistema capitalista favorece a essas interferências. Por ignorar essa falta de pureza da economia, acreditam que é possível afrouxar as amarrar do capital sem causar mais dominação e sem agravar aquelas mesmas mazelas que pensam ter a solução para combater. Ainda que o Estado desapareça, a economia, ainda assim, ficando à própria sorte, estará sob a influência dos mais diversos interesses.
A tragédia está, na verdade, no fato de que do ponto de vista estritamente econômico, o desenvolvimento social é algo neutro, não um objetivo a ser perseguido. E nesse sentido, a liberalização plena, não só no sentido do fim do Estado, mas do modo de pensar humano, no todo individualista, é o abandono de qualquer pensamento e atitude sociais e coletivos, que acaba inexoravelmente se traduzindo na perpetuação da dominação, da desigualdade e da pobreza.
Esse novo liberalismo é uma releitura do liberalismo clássico que aceita alguma interferência regulatória do Estado. Sabem, embora não admitam, os neoliberais que o Estado é um aliado do grande capital na manutenção da exploração humana. A teoria é bonita, mas a prática se mostra nefasta. Novamente, o que os liberais parecem ignorar é a impossibilidade de aplicar uma teoria pura da economia e separá-la completamente de influências externas.
O liberal acredita que para se implantar o liberalismo deve-se simplesmente não fazer nada. Confesso que invejo o conforto dessa posição ideológica, posto que é possível melhorar o mundo sem agir. Porém, há uma contradição nesse pensamento. Se o liberal não faz nada para que prevaleça o liberalismo, então alguém vai fazer para impor outro padrão econômico, quem sabe os intervencionista, os desenvolvimentista, os keynesianos, os socialista, os comunista ou os anarquista. E com um adversário completamente passivo, a vitória é certa para o lado que ao menos se mexeu.
Pode-se criticar o uso do termo neoliberalismo. Mas o fato é que, cientificamente, pode-se dar o nome que bem entender ao objeto de estudo. E o nome, diga-se, é bem adequado, já que sendo o liberalismo aplicado hoje baseado no liberalismo clássico, com algumas peculiaridades, não há nenhuma razão para fúria quanto ao nome. Se fosse um sistema que tivesse dado certo, certamente não haveria essas críticas. E não se diga o verdadeiramente pretendido pelos neoliberais não é o real liberalismo puro, mas sim o apoio do Estado para prosseguir sua dominação, porquanto o que ocorre é o uso da justificativa liberal para sustentar as políticas liberais do Estado, que apenas perpetuam a desigualdade e a dominação.