quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Deus seja louvado" nas notas de real


Triste ver que tem gente ilustrada se manifestando na mídia contra os avanços do Brasil na conquista do Estado laico.
Ives Gandra, prestigiado jurista, escreveu recentemente sobre a retirada dos dizeres: "Deus seja louvado" das notas de real. (Estado laico não é Estado ateu). 
Porém, toda a argumentação que ele usa, intencionalmente ou não, esconde uma grande falacia, uma vez que ele apresenta um conceito de laicidade do Estado muito próximo ao de religiosidade de Estado. Ao afirmar que o fim dessa expressão nas notas de real significará a "vitória de uma minoria ateia", o jurista, em verdade propõe uma ditadura da maioria. E, como se sabe, uma democracia se mede exatamente pelo nível de respeito que se tem em relação às minorias. Uma vitória da minoria ateia seria, sim, se a atual inscrição passasse a "Deus não existe" ou algo do gênero. É exatamente por essa razão que a Constituição Federal impõe a laicidade ao Estado, para que nenhuma crença seja exaltada em detrimento de outra ou de crença nenhuma. 
Estado laico é neutro em relação à questão religiosa, não tomando qualquer partido e baseando as suas políticas nos interesses sociais e políticos, e nunca em qualquer orientação religiosa. 
E mais: dentre os inúmeros deuses nos quais os cidadãos acreditam, qual "Deus" será aquele a ser louvado, conforme inscrito na moeda?
Por fim, se é para adotar a ditadura da maioria, em última análise proposta pelo jurista, por que não colocar na moeda também algo do tipo "Viva o Corinthians e o Flamengo", afinal, a maioria da população torce para um desses dois times? Se não é tão difícil manter a neutralidade do Estado quando se trata de time de futebol, por que é tão difícil as pessoas aceitarem a neutralidade religiosa (laicidade)?
Sobre o assunto, há outro texto muito bom, cuja leitura recomendo fortemetne para quem quer se inteirar melhor da questão, do jornalista Carlos Orsi: Analisando as principais críticas à proposta.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Apolítico


"Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história." (Antonio Gramsci - La Città Futura)

O Apolítico sabe um pouco de política e, exatamente por não saber muito, faz questão de se abster do debate. Mais do que isso, taxa todos que tomam partido de radicais, bitolados, comunistas, nazistas ou algo do tipo. 
Esse Apolítico ainda acredita no homem virtuoso de Aristóteles (descrito no livro "Ética a Nicômaco"), que vive no meio-termo. Ele se mantém sempre em cima do muro. É supostamente neutro ou do centrão nebuloso. Ou, pior, coloca-se acima de todo o processo, achando que todos que tomaram posição não analisaram a situação tão bem quanto ele. Considera o fim da picada a tomada de posição pública e a defesa de ideias polêmicas.
Esquece-se, portanto, das lições mais básicas de Maquiavel, segundo as quais na política quem não toma partido é dominado pela política dos que a tomam e se manter inerte diante de uma injustiça é escolher o lado do opressor. Acredita que a humanidade não evolui, mas é cíclica, ignorando o suor e sangue derramados de milhões de pessoas que sofreram ou morreram lutando pela melhora de sua condição de vida. Pensa que hoje não existe diferença entre esquerda e direita. Aliás, ele cultua a política bipartidária dos EUA, onde, eleito, um republicano em nada se diferencia de um democrata e vice-versa, já que sempre há a tendência de se encaminhar para o centro.
A impressão que eu tenho é a de que o mais "cult", o mais esclarecido e descolado, hoje, é ser como o Apolítico, mantendo essa aparência de ponderação, de que tudo tem a sua devida e justa razão, como se tudo fosse apenas questão de opinião e como se fosse uma fraqueza tomar partido ou pender para um lado. Manter-se calado ou emitir opinões neutras é sinal de virtuosidade, o resto é fanatismo ou vício de percepção puro e simples. Quantos debates riquíssimos são abortados por esse novo zeitgeist?
Em geral, o Apolítico não usa as palavras capitalismo, neoliberalismo, consumismo, individualismo, nem dominação, por serem pretensamente ideológicas. Prefere os insossos "pós-modernidade", "globalização", "era pós-industrial", "geração facebook" ou "atual sistema econômico". Ele acha que o fim da história anunciado por Fukuyama chegou, a era de lutas sociais para conquista de direitos já passou, sendo essa modernidade excludente “irreversível”. Fala em "hipossuficiente", não em pobre ou explorado, acreditando se tratar de um termo técnico que não serve especificamente a nenhum interesse. Acha até bonitos os movimentos como Ocuppy Wall Street e a Primavera Árabe, mas logo infere que no Brasil não há qualquer razão para revoltas, exceto em relação à corrupção, falta de educação e altos impostos e encargos (gosta muito de culpar a legislação trabalhista pelo insucesso dos empresários).
Muitas vezes (para não dizer sempre) o Apolítico é contraditório. Ele odeia o PT por causa da corrupção e do Bolsa-Família, mas não hesita em sonegar impostos e aproveitar a redução de IPI para trocar de carro e de geladeira. Preocupa-se com o desemprego apenas para falar mal da legislação trabalhista, que supostamente dificulta a criação de empregos formais (basta ver os argumentos da classe-média contra os direitos das domésticas). Ele, por não enxergar que o ateísmo sim é a posição mais neutra possível em relação à religiosidade, afirma não acreditar no deus cristão, mas em uma força superior, pois pensa que ali ele encontrou o perseguido "meio termo" ideal. Ele consegue acreditar que responsabilidade social se resume a ter um projeto de plantar árvores, usar papel reciclado ou ajudar um asilo, não vendo nada de errado na poluição (o aquecimento global é apenas invenção dos eco-chatos), na política de incentivo ao uso de carros, no descumprimento de direitos trabalhistas e previdenciários. Para o Apolítico, é justo que o Gusttavo Lima e o Neymar ganhem mais de milhões e milhões por mês enquanto outras pessoas se esfolem de trabalhar dia e noite para mal conseguirem pagar o aluguel. É tudo questão de meritocracia, afinal. Ele fala mal dos hábitos deploráveis do povão, mas joga a bituca de cigarro no chão. Ele é educado com as visitas e com seu chefe, mas não com os atendentes, garçons, pedestres ou empregados.
Uma habilidade o Apolítico tem de sobra, que é a de se alienar achando que está se informando e se esclarecendo sobre o mundo à sua volta. Ele lê a Veja sabendo que ela tem fama de tendenciosa, mas, analisando as matérias, por concordar passivamente com tudo o que está escrito, acha um exagero dizer que a revista seja partidária, pois não consegue identificar como e o quanto ele está sento manipulado pela linha editorial de extrema direita. Chega a pensar que o Jornal Nacional é imparcial. Em estágio terminal, o Apolítico é capaz de, até para não polemizar, concordar com quem diz que "direitos humanos são só para humanos direitos", afinal, a frase tem algum sentido para ele.
O Apolítico é o que menos contribui ao debate, a meu ver. Respeito muito mais alguém convicto, mesmo que tenha opinião radicalmente oposta à minha opinião (vide meus arranca-rabos até com nazistas declarados via comentários no Facebook), mas disposto a discutir (utilizando o método socrático para engrandecer suas razões, pondo à prova a sua posição), do que esse outro descrito acima, que toma sempre o atalho mais fácil, menos dispendioso, menos custoso. 
Enfim, o Apolítico é, em verdade, um anti-político, afinal, política de verdade é feita para mudar os rumos da sociedade, e o que o Apolítico pretende, no fundo, é manter as coisas como estão, já que, evidentemente, como parte da classe dominante, beneficia-se do sistema.
Mais do que isso, até um tempo atrás eu mesmo tinha um perfil parecido com esse, mas quando comecei a procurar saber as razões dos dois lados da moeda de forma mais aprofundada - conversando com pessoas dos dois lados, lendo muita coisa a respeito também dos dois lados - a tomada de posição foi inevitável, a pílula vermelha, e não a azul (será coincidência a escolha das cores no Matrix?), já tinha sido ingerida sem que eu percebesse. E era, isso sim, irreversível.

(Atenção: O texto acima é uma ironia. Não foi feito para ofender pessoalmente ninguém. Claro que nem todas as pessoas que preencham uma ou algumas características acima são necessariamente apolíticas. Trata-se de uma generalização intencional, com a devida licença poética, mesmo não se tratando de um texto lírico.)