terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Eloá e a mídia sangrenta

Incrível a habilidade da mídia para extrair, até a última gota, lucro da dor e do sofrimento humanos presentes nos casos de comoção nacional, como da Isabella Nardoni, da Eloá, da Eliza Samudio, etc. O mais triste é verificar que os veículos de imprensa só estão atendendo à demanda de um povo que tem sede de vingança, só não sabe bem contra quem.

Mas não há justificativa para essa cobertura irresponsável dos acontecimentos. As empresas de comunicação, como qualquer outro ente do mercado, devem ter responsabilidade social ao noticiar os fatos. Não podem servir simplesmente ao emburrecimento das pessoas, pois são os olhos através dos quais a "massa" enxerga além do seu próprio mundinho. Há um ciclo vicioso altamente lucrativo para os meios de comunicação. Eles transmitem conteúdo emburrecedor porque o consumidor é burro, e o consumidor continua burro porque só tem contato com conteúdo emburrecedor.

O caso Eloá é talvez o mais emblemático. A própria imprensa teve participação na morte da garota, já que as emissoras de TV e rádio atrapalharam a todo o tempo a operação da polícia, sobretudo quando transmitiram ao vivo, inclusive para o próprio assassino, o momento da ação policial para resgatá-la. Quer dizer, a mídia ganhou dinheiro durante o sequestro, imediatamente depois, e agora, 4 anos depois, continua a lucrar em cima do sangue alheio, mostrando cada detalhe do julgamento.

O povo, tomado pela revolta e pelo sentimento revanchista, como se fosse um grande show ou espetáculo, acampa ao lado do Fórum, tenta agredir a advogada de defesa e endeusa o promotor. Não passa pela cabeça de ninguém que o réu é um ser humano e, como qualquer outro, tem direito a defesa, à pena justa, à sanção que o direito lhe reserva, e não à que a opinião pública aleatoriamente deseja (se assim o fosse, haveria tortura, morte, decapitação e estripação públicas de Lindemberg). Vê-se até Bacharéis em Direito, mergulhados também nesse espírito de ódio, afirmando que o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa deveriam ser suspensos em casos como esses.

Estarrecedor observar que estamos tão longe de incorporar a cultura dos Direitos Humanos como valor social desejável. São ainda tidos como os "direitos do bandido". E bombardeá-los dá ibope.  

Pinheirinho, Cracolândia, desocupação de terras prédios abandonados e improdutivos, violência contra manifestantes etc. ninguém quer mostrar, até porque ninguém quer ver...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Ditadura de mercado: Pobre Grécia

Indo totalmente na direção do que eu tinha escrito aqui em postagem anterior a respeito dos culpados pela crise econômica mundial ("O povo é culpado pela crise financeira?"), Clóvis Rossi, colunista da Folha que não pode ser nem de longe considerado um ícone da militância esquerdista, mostrou em sua coluna de ontem ("A ditadura esfola a Grécia", Folha, 12.2.2012) o quão absurda é a ideia de culpar o povo grego pela crise naquele país, já que as pessoas teriam consumido mais do que eventualmente poderiam pagar.

Segundo escreveu o colunista,
"o mais triste é que 11 de cada 10 análises sobre a Grécia culpam os gregos -e apenas os gregos- pela sua tragédia. A história convencional é a de que a Grécia viveu uma esbórnia de consumo financiada pelo endividamento e agora tem que pagar com dor. Não deixa de ser verdade, mas é só parte da verdade. Primeiro, consumir é a música que mais toca no capitalismo. Logo, os gregos só fizeram o que é de praxe no sistema hegemônico. Segundo, tomaram empréstimos não porque tenham assaltado os bancos, mas sim porque os bancos os ofereceram sem olhar responsavelmente para a capacidade do tomador de devolvê-los algum dia."
Ou seja, os bancos ofereceram empréstimos de forma completamente temerária, sem analisar corretamente os riscos (ou aferindo-os de forma precisa, mas por má-fé ocultando seus possíveis efeitos desastrosos dos demais entes do mercado) e, tomando o merecido calote, vêem cinicamente nos seus clientes os culpados pela crise financeira cuja solução nem Sócrates, nem Platão, nem Aristóteles seriam capazes de pensar.

Também corroborando o meu texto anterior, o autor - repita-se, não se trata de um marxista desvairado - afirma que, na Grécia, 
"quem paga a crise são os trabalhadores de salário mínimo, a ser reduzido, e os aposentados, cujos vencimentos serão cortados. Os bancos só cedem anéis para poderem manter os dedos gordos, ainda mais engordados pelos juros obscenos que cobram para rolar a parte da dívida grega que não será reestruturada."
Completa suas brilhantes colocações de forma lapidar, ainda referindo-se à nação grega: "Ditadura - ainda mais ditadura de mercado - é assim."

O Mercado-Ditador, por meio da União Européia, colocou no posto de Primeiro Ministro - lugar anteriormente ocupado por Papandreu, eleito legítima e democraticamente - um tal de Papademos, fantoche de perfil puramente técnico, sem qualquer eleição pelo povo daquele país.


Digno de nota também o fato de que antes de Papandreu deixar o cargo ele havia proposto um plebiscito para consultar diretamente o povo sobre a aprovação do "Pacote de Austeridade". O Deus-Mercado ficou em pânico. E a democracia direta não foi utilizada em favor de que a criara. Como disse o blogueiro Bruno Silva Rocha (A Grécia e os limites da democracia representativa)
"a tragédia se dá diante dos discursos. Papandreu, líder do PASOK (ex-social democratas, similar ao PSOE espanhol) se elegeu no voto de protesto contra a direita, pegando carona no discurso da insurreição popular de 2008. Dois anos depois cai por blefar um apelo para a democracia direta na terra que a inventou.
Se a população fosse convocada a decidir, teria sobre os ombros toda a responsabilidade política, sabendo que não seguir as regras da Europa implica em sair da zona euro e dar um calote na dívida."
Quem paga a conta, quando falta democracia? Óbvio que são os mais pobres, vendo o salário mínimo diminuir, seus benefícios previdenciários minguarem, os impostos aumentarem...


E não precisava ser assim. Nos Estados Unidos, os bancos causadores da crise estão sendo obrigados a indenizar em U$ 26 bilhões suas vítimas, 2 milhões de pessoas que já perderam ou estão para perder a casa financiada.


Odeio dizer isso, mas... Pontinho para os EUA, que já têm milhões de pontões negativos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012


Lendo a Folha de hoje acabei me deparando com esse artigo brilhante do Desembargador aposentado José Osório de Azevedo Jr. acerca dos acontecimentos em Pinheirinho. Expõe, de forma clara e com argumentos sociais e jurídicos, a realidade que a imensa maioria das pessoas, mergulhadas no universo dos próprios interesses, não vêem ou não querem ver.

Ainda o Pinheirinho
Decisão judicial não se discute, cumpre-se? Apenas em casos corriqueiros, mas não quando pessoas indefesas são atingidas; o direito não é monolítico
Os fatos são conhecidos: uma decisão judicial de reintegração de posse sobre uma favela. A ocupação começou em 2004, por pessoas necessitadas de moradia.
Segundo a Folha, a proprietária obteve reintegração liminar em 2004. Durante um imbróglio processual, os ocupantes permaneceram. Em 2011, uma nova decisão ordena a reintegração. Foi essa a ordem que o Poder Executivo cumpriu no dia 22 de janeiro, com aparato policial, caminhões e máquinas pesadas.
A ordem era, porém, inexequível, pois, em sete anos, a situação concreta do imóvel e sua qualificação jurídica mudaram radicalmente.
O que era um imóvel rural se tornou um bairro urbano. Foi estabelecida uma favela com vida estável, no seu desconforto. Dir-se-á que a execução da medida mostra que a ordem era exequível. Na verdade, não houve mortes porque ali estava uma população pacífica, pobre e indefesa.
Ninguém duvida da exequibilidade física da ordem judicial, pois todos sabem que soldados e tratores têm força física suficiente para "limpar" qualquer terreno.
O grande e imperdoável erro do Judiciário e do Executivo foi prestigiar um direito menor do que aqueles que foram atropelados no cumprimento da ordem.
Os direitos dos credores da massa falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição.
O principal deles está inscrito logo no art. 1º, III, que indica a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Esse valor permeia toda a ordem jurídica e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes.
As imagens mostram a agressão violenta à dignidade daquelas pessoas. Outro princípio constitucional foi afrontado: o da função social da propriedade. É verdade que a Constituição garante o direito de propriedade. Mas toda vez que o faz, estabelece a restrição: a propriedade deve cumprir sua função social.
Pois bem, a área em questão ficou ociosa por 14 anos, sem cumprir função social alguma. O princípio constitucional da função social da propriedade também obriga não só aos particulares, mas também a todos os Poderes e os seus dirigentes.
O próprio Tribunal de Justiça de São Paulo já consagrou esse princípio inúmeras vezes, inclusive em caso semelhante, em uma tentativa de recuperação da posse de uma favela. O tribunal considerou que a retomada física do imóvel favelado é inviável, pois implica uma operação cirúrgica, sem anestesia, incompatível com a natureza da ordem jurídica, que é inseparável da ordem social. Por isso, impediu a retomada. O proprietário não teve êxito no STJ (recurso especial 75.659-SP).
Tudo isso é dito porque o cidadão comum e o estudante de direito precisam saber que o direito brasileiro não é monolítico. Não é só isso que esse lamentável episódio mostrou. Julgamento e execução foram contrários ao rumo da legislação, dos julgados e da ciência do direito.
Será verdade que uma decisão tem de ser cumprida sempre? Só é verdade para os casos corriqueiros. Não para os casos gravíssimos que vão atingir diretamente muitas pessoas indefesas.
Estranha-se que o governador tenha usado o conhecido chavão segundo o qual decisão judicial não se discute, cumpre-se. Mesmo em casos menos graves, os chefes de Executivo estão habituados a descumprir decisões judiciais. Nas questões dos precatórios, por exemplo, são milhares de decisões judiciais definitivas não cumpridas.