Eu estava lá ontem, dia 18 de junho de 2013.
O povo na rua, a indignação, os gritos de guerra, os cartazes, tudo
aquilo é extremamente contagiante. As pessoas se sentem parte de algo que, de
fato, está construindo a história.
Vi milhares fazendo reivindicações sobre os mais diversos temas. Desde o
passe livre, até a legalização da maconha, a volta da ditadura militar e mesmo
o fim do capitalismo.
Vi gente cantando contra a PM, contra o Governador, contra a Presidente,
contra a Rede Globo, contra a Veja, contra o Arnaldo Jabor, contra o Datena e a
grande mídia em geral.
Vi uns agitadores passarem acelerados gritando que “o choque” estava
batendo em manifestantes “lá na frente”, o que estava longe de ser verdade. São
idiotas como esses que, antes de quinta feira passada, arruinavam a causa.
Vi o povo gritando contra as bandeiras de partidos políticos.
Vi pessoas idosas no meio da marcha, mostrando que a utopia não é um
lugar exclusivo dos jovens.
Vi meu professor da Faculdade de Direito da USP e Desembargador Federal,
gritando com a galera.
Vi, é verdade, mais playboy do que gente realmente pobre. Um cínico
poderia dizer que a “gente diferenciada” da favela parece que não foi pra rua e
ficou vendo a pela televisão o “povão” de Higienópolis.
Senti, enfim, uma sensação muito boa, pois tudo aquilo era maravilhoso,
afinal, algo estava mudando, o povo estava reaprendendo a tomar as ruas para
lutar.
Todavia, recuperada a razão, é hora de analisar friamente os fatos. O
que de fato aconteceu ontem?
A meu ver, deve-se tomar muito cuidado para que o protesto não seja mais
contra o “governo” como uma entidade abstrata do que pelo passe livre. O
protesto não pode ser contra tudo, pois, no fim das contas, se for assim ele se
torna contra nada. As pautas devem ser específicas. Gente falando de
impeachment da Dilma, gente protestando contra a corrupção, contra os altos
impostos, contra a criminalidade. Pára! Legal mostrar a indignação, mas o
protesto não era contra nada disso! Era contra o aumento do preço da passagem e
a favor à tarifa zero! Democracia é assim que se faz. Protestando por uma ou
alguma causa de cada vez.
No caso das manifestações de ontem, a mensagem deve ser absolutamente
clara: enquanto o valor da tarifa não baixar, o povo não vai sair das ruas. Uma
estratégia muito simples e milenar. Vencendo essa batalha, que venham as
próximas, contra a PEC 37, a favor aos 10% do PIB para a Educação, pela desmilitarização
da polícia, pela saída do Feliciano da CDHM-CD, pelo financiamento público de
campanhas, pela instituição do imposto sobre grandes fortunas, etc.
- Ou alguém acha seriamente que a Dilma vai renunciar? Ela foi eleita
por vasta maioria e, pelo que consta até agora, não há nenhum indício de que
tenha cometido qualquer ilegalidade que pudesse dar ensejo à cassação de seu
mandato.
- Ou alguém acha que o Renan Calheiros, o Paulo Maluf e o José Sarney
vão parar de roubar o povo porque este “se cansou” e saiu às ruas protestar
genericamente contra a corrupção? Por isso tem que dar nome aos bois. “Protestamos
pela saída imediata do Renan Calheiros, do Paulo Maluf e do José Sarney!” e não
algo genérico e fluído como “estamos cansados de tanta corrupção”. É o mesmo
que fazer um protesto contra os estupros. Quem é realmente favorável ao
estupro? Corrupção é, usando o clichê eloquente, a ponta do iceberg.
- Ou alguém acha que o governo vai diminuir os impostos por que houve
protestos? O problema do Brasil não é nem nunca foi o valor dos impostos. O
problema é que o sistema tributário cobra, em proporção, muito mais dos pobres
do que dos ricos, mais do trabalho do que do capital. Os ricos, que são beneficiários
da exploração dos mais pobres devem mesmo pagar altos valores para compensar a
sociedade pela exploração que promovem. Pagar imposto faz parte dos mecanismos
de redistribuição de renda e de promoção da igualdade material na sociedade. Além
disso, cobram-se altas taxas, mas não há o devido retorno em serviços públicos
de qualidade. E por que não sobra dinheiro para investir? Sim, uma das causas é
a corrupção pura e simples, mas a outra é porque TRILHÕES de reais por ano são usados
para pagar a dívida aos bancos, os mesmos responsáveis pela crise mundial que
abate o mundo desde 2007/2008. Se o Estado deixa de investir em educação, saúde,
segurança e, pasme, transporte público, por exemplo, alegando que não tem
dinheiro, é porque se comprometeu com banqueiros nacionais e internacionais a
economizar recursos para quitar as suas dívidas (superávit primário). A corrupção
é um ralo dos cofres públicos, mas não o único e nem o mais importante.
- Ou alguém acha que os delinqüentes vão parar de assaltar, matar,
estuprar porque estão fazendo protesto “contra a criminalidade”? Ou alguém acha
que aumentando as penas, reduzindo a maioridade penal e aumentando a repressão e
autoritarismo da polícia a criminalidade vai baixar? A história e a sociologia
mostram de forma clara que o problema da violência é só um sintoma, cuja doença
deve ser tratada na base. Educação crítica, distribuição de renda, serviços
públicos de qualidade, investimentos em artes, esporte e cultura, tudo isso
diminui os índices de violência, não medidas eleitoreiras e imediatistas.
Outros fatos merecem críticas. Qual é o problema de subir bandeiras
partidárias no meio do protesto? Vi manifestantes erguendo bandeiras do PSOL e
outros gritando para que elas fossem baixadas. Há relatos de violência contra
um membro do PSTU. Peraí de novo! Faz parte da democracia que entidades se apóiem
mutuamente. Democracia é o povo na rua, ok, mas também passa pelos partidos
políticos, que podem livremente apoiarem as causas. São os partidos que historicamente,
desde sempre, defendem institucionalmente os interesses dos seus representados.
No caso do PSOL, PSTU, PCO, etc., sempre são eles que estão lá batendo panela
na Av. Paulista. Agora vem um grupo apolítico que “acordou” e aprendeu a
protestar ontem querendo impedi-los de fazer o que sempre fizeram! Absurdo. Felizmente
isso não se generalizou, pois em outros pontos da quilométrica manifestação os
partidos tiveram a liberdade de hastear suas bandeiras e se mostrar como
apoiadores.
Confesso que vi muita gente protestando por modismo, porque a mídia passou
a apoiar a luta depois de registrar a violência gratuita da PM. Não sei se era
a maioria, prefiro acreditar que não. Mas fico me perguntando quantas daquelas dezenas
e dezenas de milhares de pessoas estariam realmente dispostas a viver na utopia,
a perder privilégios em prol da distribuição de renda e da igualdade e justiça social.
Aparentemente, aprendeu-se que manifestações de rua são positivas. Mas ontem
a causa foi simpática a todos, mas e quando se estiver discutindo algo mais
controverso, como o aborto ou a legalização da maconha? Será que o direito de
se manifestar vai ser bem visto e devidamente respeitado, como valor
constitucionalmente assegurado que é?
Percebo que a elite, (tele)guiada pela Globo e pela Veja, está
nitidamente querendo se apropriar do movimento para esvaziá-lo, colocando em
pauta qualquer causa, inclusive as causas erradas, como as que eu citei acima, corrupção,
criminalidade, impeachment e alta de impostos.
Isso não significa, todavia, que a manifestação foi em vão. Não foi. De
fato, história foi feita ontem. O Congresso Nacional está discutindo a pauta do
transporte público, o Haddad está cogitando ceder, diversas cidades já tiveram
aumentos revogados ou cancelados no transporte público. A mídia passou a se
referir aos vândalos como minoria radical, e não mais pretendendo generalizar
as atitudes violenta a todos os manifestantes. Ainda, as pessoas de fato
reaprenderam que democracia é também ir para a rua, e não apenas apertar uns
botõezinhos de dois em dois anos. Dane-se o trânsito se o que se discute é um
direito maior, e isso deve entrar na cabeça das classes baixas: a rua também é de
vocês, os direitos também são de vocês. Por fim, a PM de São Paulo aprendeu que
protesto é ato de cidadania e que só excessos extremos devem ser reprimidos, não
o movimento em si.
O saldo é positivo, e, apesar dos pesares, continuo orgulhoso de ter
feito parte de algo tão grandioso.