Resolvi postar aqui o prefácio da minha "teste de láurea" (ou TCC, entregue em outubro de 2011), em que eu contextualizo resumidamente o momento sócio-político vivido, pressuposto para a elaboração e entendimento das ideias defendidas no corpo do trabalho.
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O
mundo hoje está em transe. A inflamável lógica do capitalismo, do consumismo e
do individualismo, de pavio aceso há tempos, parece finalmente ter explodido na
grande crise econômica em que imergimos.
PAUL
KRUGMAN, influente economista estadunidense ganhador do Prêmio Nobel, defendendo que os ricos arquem com
a sua parte do “contrato social”, do qual são os mais beneficiados, afirmou
recentemente que “o ataque sustentado ao movimento sindical organizado e a
desregulamentação financeira criaram fortunas enormes, ao mesmo tempo em que
abriram caminho para o desastre econômico.”
Comentando os recentes motins populares que atingem a
Inglaterra e outros países desenvolvidos, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, descreve
e critica o vigente neoliberalismo, que, segundo afirma, alimenta-se da
desigualdade e do individualismo criados. Nas palavras do sociólogo português:
“Com o
neoliberalismo, o aumento da desigualdade social deixou de ser um problema para
passar a ser a solução. A ostentação dos ricos transformou-se em prova do êxito
de um modelo social que só deixa na miséria a maioria dos cidadãos porque estes
supostamente não se esforçam o suficiente para terem êxito.
Isso só foi
possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual,
contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade
de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela,
quer como seus beneficiários.
Para o indivíduo
assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa; quando
isso sucede, nunca é reconhecida como merecida. Por outro lado, na sociedade de
consumo, os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar
incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm
como quando não se têm.
Entre acreditar que o
dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para obtê-lo vai um
passo muito curto. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes
aconteça. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, acabam nas
prisões.”
De
fato, os recentes protestos no mundo desenvolvido, embora alguns queiram
acreditar que as causas são de insatisfações meramente individuais, na verdade
demonstram o grau de indignação das pessoas perante a socialização dos
prejuízos sociais e econômicos que tem havido. É dizer, as grandes corporações
e bancos de investimento, sem qualquer tipo de culpa, adotaram procedimentos
escusos para aumentar seus ganhos, inflando uma bolha especulativa de
proporções globais que, ao estourar, está sacrificando toda a coletividade, de
modo a acelerar o derretimento do Estado de bem-estar social construído no
pós-guerras.
A
injustiça dessas práticas é tão patente que até aqueles amplamente beneficiados
pelo sistema econômico atual estão insatisfeitos com a atual situação
socioeconômica que lhes surge à vista. Figuras como o empresário estadunidense
WARREN BUFFET, que aparece sempre nos primeiros lugares dos rankings de pessoas
mais ricas do mundo, têm
defendido uma maior distribuição de renda. Em artigo recente para o jornal The
New York Times, BUFFET defendeu que a fortuna dos mega-ricos deve ser mais
tributada, argumentando que tal política financeira é muito mais propícia a gerar
empregos, tal como o foi em seu país nas décadas de 80 e 90. Segundo afirma:
“Our leaders have asked for ‘shared sacrifice.’ But when they did the
asking, they spared me. I checked with my mega-rich friends to learn what pain
they were expecting. They, too, were left untouched.
While the poor and middle class fight for us in Afghanistan, and while
most Americans struggle to make ends meet, we mega-rich continue to get our
extraordinary tax breaks. Some of us are investment managers who earn billions
from our daily labors but are allowed to classify our income as “carried
interest,” thereby getting a bargain 15 percent tax rate. Others own stock
index futures for 10 minutes and have 60 percent of their gain taxed at 15
percent, as if they’d been long-term investors. (...)
People invest to make money, and potential taxes have never scared them
off. And to those who argue that higher rates hurt job creation, I would note
that a net of nearly 40 million jobs were added between 1980 and 2000. You know
what’s happened since then: lower tax rates and far lower job creation. (...)
If you make money with money, as some of my super-rich friends do, your
percentage [of income paid] may be a bit lower than mine. But if you earn money
from a job, your percentage will surely exceed mine — most likely by a lot.
(...)
My friends and I have been coddled long enough by a billionaire-friendly
Congress. It’s time for our government to get serious about shared sacrifice.”
Se os mais beneficiados por um determinado modelo vêem com
nitidez a necessidade de mudanças, por mais que confessadamente com o intuito
de dar continuidade ao próprio modelo que os contempla, temos um sinal claro de
que há transformações em curso, e não se pode ficar alheio a esse movimento,
seja qual for o objeto de estudo, especialmente se inserido na grande área das
Ciências Humanas, na qual se insere o Direito.
No plano político-jurídico, o reflexo desse ambiente tão
corrosivo é, pelos mais diversos motivos de ordem política e econômica, o
tolhimento de direitos dos cidadãos comuns, sempre dolorosamente conquistados.
Mais pontualmente no âmbito do Direito do Trabalho, é como se
surgisse mais um argumento em favor da precarização da relação de trabalho,
ganhando um ponto quem defende a lógica liberal, do trabalho como mera
mercadoria, do trabalhador como número, dos direitos trabalhistas como gastos a
serem subtraídos até que impere a simples lei da oferta e da procura.
Especificamente no Brasil, por questões históricas e
culturais, longe de estar despertando alguma solidariedade, o momento é
simplesmente de reação dos beneficiários do sistema econômico vigente. O
discurso é sempre o da desoneração de folha de pagamento, do alto preço da mão
de obra, do excesso de direitos e benefícios, da não intervenção do Estado de
nenhuma maneira nos negócios particulares.
É necessária, pois, uma contrarreação do Direito frente a
essa postura irresponsável daqueles que determinam os rumos de nossa sociedade.
Quem deve pagar pelos erros e acertos do empreendimento econômico é aquele que
assumiu os riscos, o empresário,
e não os trabalhadores. O Direito do Trabalho é um instrumento direcionado a implementar
justiça, e não a perpetuar pobreza e desigualdades.
Como se verá, há toda uma hermenêutica constitucional voltada
à interpretação dos direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais,
predominando em praticamente quaisquer circunstâncias. Como afirma o eminente
constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA, “embora capitalista, a ordem econômica
dá prioridade aos valores do trabalho humano, sobre todos os demais valores da
economia de mercado”
O empresário, então, dada a necessidade de competição voraz,
criada e sustentada pela lógica predominantemente concorrencial, consumista e
individualista, tende a adotar práticas que, na busca por maiores lucros
através do corte de custos, colocam em risco a integridade, a personalidade e a
dignidade do trabalhador.
Devido a esse cenário de competição, tanto de empresários
como dos próprios trabalhadores, típicos do neoliberalismo, surgem modelos
organizacionais do trabalho desligados do ser humano e, portanto, altamente
prejudiciais à dignidade dos obreiros e atuantes como se nenhuma norma
trabalhista existisse. Os empresários, não podendo dominar a concorrência e o
mercado no qual compete, exercem muitas vezes de maneira totalmente
irresponsável o único poder que tem a seu alcance: a dominação do trabalhador a
ele subordinado.
Em meio a tudo, a mídia em geral, de modo muito eficaz e
sedutor, molda o pensamento das massas direcionando-as a acreditar que o
sucesso e a virtude estão na dedicação aguerrida e estóica ao trabalho.
Bombardeados pelo marketing e propaganda, os trabalhadores vêem no consumo
frenético e desmedido a sua verdadeira identidade. Para MARILENE CHAUÍ, “a
propaganda tenta garantir ao consumidor que ele será, ao mesmo tempo, igual a
todo mundo e não um deslocado (pois consumirá o que os outros consomem) e será
diferente de todo mundo (pois o produto lhe dará uma individualidade especial)”.
Com razão, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS afirma categoricamente
que “o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana”.
Tem-se, assim, um atropelamento da condição humana. Dentro da lógica
da concorrência feroz dos próprios colegas de trabalho, a produtividade do
profissional é altíssima, mas apenas até o momento em que ele se esgote
totalmente, quando, não estando mais apto àquela atividade, é dispensado do
mercado de trabalho, não raro servindo como exemplo de fracasso. É a lógica do
lucro engolindo as pessoas. Até a família é atingida, pois os pais, imersos
nesse habitat desumano, moldam as
crianças para esse cenário sombrio, tolhendo delas o tempo, fazendo-as trocar
as saudáveis brincadeira pelas mais diversas aulas e atividades que desde logo
moldam o futuro cidadão treinado para produzir e para consumir.
Enfim, a ganância atropela a moral, a ética e o respeito.
Para a professora aposentada de Medicina Preventiva da
Universidade de São Paulo e de Sociologia do Trabalho da Fundação Getúlio
Vargas, EDITH SELIGMANN-SILVA, a nova geração de tecnologias tem sido muito
prejudicial aos trabalhadores, que se vêm cada vez mais pressionados a abandonar
suas próprias vidas em dedicação ao trabalho. Afirma a professora:
“À medida que se
expandiu a implantação da automação, dos processos computadorizados e de
tecnologias de ponta, de modo geral, novos problemas e novas necessidades foram
sendo identificadas tanto porque tais tecnologias demandam outras modalidades
de ‘participação mental’ no trabalho, quanto porque as correlações de poder
capital-trabalho têm evoluído de modo desfavorável para os assalariados. Assim,
paralelamente ao desenvolvimento técnico e ao crescimento econômico de muitos
países, começa a surgir também questionamentos do que vem acontecendo nos
contextos de trabalho e em relação ao meio ambiente: a dominância de princípios
e lógicas econômicas que contrariam prioridades de ordem ética como o respeito
à dignidade humana.”
É nesse contexto de preocupação com os efeitos deletérios às
estruturas sociais dessa postura dos empresários em detrimento dos
trabalhadores, imposta pelo capitalismo, que se insere este trabalho, neste
momento de contrarreação à extirpação de direitos dos trabalhadores, em que
novas práticas empresariais são cada vez mais voltadas à exploração do
trabalhador como mero insumo do processo produtivo.
O ordenamento jurídico reconhece a maior fragilidade do
trabalhador face ao empregador, contemplando o Direito do Trabalho como ramo
que cuida das normas reguladoras dessa relação de trabalho, visando basicamente
à proteção dos obreiros. A Constituição Federal expõe um pródigo rol de
direitos sociais tidos como fundamentais. Essa proteção aos trabalhadores ganha
mais sentido e importância nos tempos atuais de reação neoliberal.
Este trabalho, partindo desse pressuposto contexto
socioeconômico e dos objetivos da Constituição da República, que ampara a
dignidade humana e a busca pela justiça social, visa a expor um instrumento
eficaz de justiça, que é a responsabilização civil do empregador pelo mero
descumprimento de norma trabalhista.
É fato que muitas das normas trabalhistas, como direitos
fundamentais dos trabalhadores que são, ao serem desrespeitadas violam não
apenas o direito ou o patrimônio dos trabalhadores, mas a sua personalidade,
sua dignidade e integridade. Não é difícil se vislumbrar a gravidade dessa
situação quando se tem em mente, por exemplo, que muitas empresas adotam a
prática de exigir jornadas de trabalho muito acima do limite legal ou de exigir
que o empregado esteja disponível “full
time”, de descumprir normas de higiene, medicina e segurança do trabalho,
de atrasar salários (tido o recebimento do salário como o direito fundamental
que sustenta os outros direitos fundamentais do obreiro) de forma contumaz, de
sonegar verbas rescisórias e assim por diante.
Para haver dano moral é necessário que haja um dano
considerável à integridade da pessoa. Estando presente esse dano e demonstrado
o seu nexo causal com a conduta do agente, no caso, a empresa que descumpre
normas trabalhistas, pode-se dizer que juridicamente surge o dever de reparar o
trabalhador, seja in natura, seja por
meio de indenização em dinheiro, sem prejuízo das indenizações trabalhistas,
administrativa, e até das multas penais que coexistam.
Como se verá ainda, hoje é pacífica a aceitação do dano moral
coletivo, também chamado de dano social, quando há abalo de direitos
fundamentais transindividuais de toda a sociedade ou de determinada
coletividade, de modo que a sua reparação se dá por meio de indenização tem
caráter predominantemente punitivo e pedagógico.
Não estamos advogando pelo tratamento do empresário como bode
expiatório por todas as mazelas do sistema no qual está imerso. O que se
pretende é mostrar a possibilidade de uma aplicação nova para um instituto
antigo, de modo a inibir o descumprimento de normas protetivas dos
trabalhadores. Entendemos que se dá um pequeno passo na direção da busca por
uma aplicação do capitalismo mais consentânea com os ideais buscados pela
sociedade, expressos na Constituição Federal, de modo a tutelar devidamente a
dignidade dos trabalhadores e perseguir a justiça social.
Segundo a revista Forbes. The World's Billionaires. #1 Warren Buffet. Disponível em <http://onforb.es/1acVTv>. Acesso em 30 ago. 2011.