sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A culpa pelo caos

Hoje assisti a um pedaço do Jornal Nacional que noticiava a situação da coleta de lixo na cidade de Duque de Caxias-RJ. Lembrei-me rapidinho do porquê eu não assisto TV há tanto tempo.
Segundo a reportagem, a causa principal para o lixo não estar sendo recolhido é que a prefeitura parou de pagar a empresa responsável pelo serviço, e então, esta não mais realizou a sua parte do contrato, ou seja, parou de limpar a cidade. Em nenhum momento a reportagem deu a entender que a empresa estava errada em deixar de prestar o serviço essencial à população, de coletar o lixo, e talvez realmente não estivesse.
O que impressiona, de fato, é que a notícia foi completamente diferente das reportagens que tratam de paralisação de atividades públicas por causa de greves. Nesses casos, a grande imprensa monta as reportagens colocando a culpa do caos nos trabalhadores, e não nas empresas e governos que deixam de pagar os salários dos empregados ou se negam a cumprir sua prestação nos contratos de trabalho. Dois pesos, duas medidas. Às empresas é lícito resistir ao não cumprimento de um contrato, afinal, o ente público é que tem errou; mas, de outro lado, os trabalhadores lesados não podem protestar, pois devem se conformar em trabalhar sob quaisquer condições, recebendo salário ou não. Enfim, se a causa da imundície fosse a greve dos lixeiros, a reportagem certamente iria tratá-los como criminosos, como sempre faz com os grevistas e sindicalistas.
E o direito fundamental à greve vai, assim, sendo destruído dia-a-dia, enquanto o direito das empresas fazerem o que bem entendem vai sendo consolidado como absoluto, não importando às custas da dignidade de quantas pessoas.

O esquerdista e seu iPhone

Na mesma esteira do pessoal que fala mal de quem não gosta de Big Brother ou de quem é fã de Chico Buarque, virou moda também criticar o discurso da esquerda usando para isso os bens que a pessoa de esquerda possui. Exemplo: "Você fala mal do capitalismo mas tem uma conta no Facebook, que é uma empresa privada americana." ou "Você diz que é comunista mas tem um Ford!"

Por coerência, então, se um esquerdista não pode ter determinados bens, como telefone celular ou carro, então, a pessoa que é de direita ou “neutra” não pode votar, expressar-se, ir e vir, associar-se livremente, ter resguardadas a privacidade e intimidade, inclusive do lar; também não pode resistir a ordens arbitrárias e ilegais do poder público, mesmo relacionadas à pena de prisão, nem exigir ser tratada sem discriminação; não pode, igualmente, ter suas próprias crenças religiosas e convicções políticas, muito menos reivindicar direitos do consumidor, da criança e do adolescente, ambientais, trabalhistas ou previdenciários e nem mesmo qualquer direito à educação, saúde e segurança, além de outros muitos direitos individuais e coletivos. 

Afinal, todos esses direitos e garantias que hoje consideramos básicos, fundamentais, foram conquistados às custas do suor e sangue de milhares de esquerditsas, que ao longo da história lutaram para que todos, sem nenhuma exceção, pudessem ter uma vida digna. 


Claro que não pega bem um militante dos direitos humanos ter uma Ferrari, assinar a Caras, comprar na Zara, ter uma coleção de autênticos Rolex e comer frequentemente no Mc Donald’s. Mas essa ostentação toda não se compara ao simples fato de se possuir determinado tipo de bem de simples uso e conforto. Queiramos ou não, mesmo quem critica o sistema capitalista neoliberal selvagem, ainda está nele inserido. A ideia é mudar a situação atual, e não fugir dela.


Imaginemos a seguinte situação: Alguém critica um esquerdista por ter uma conta no Facebook, um carro e um telefone de última geração. 

Mas o que, de fato, se esperaria? Que o esquerdista deletasse seu Face e doasse seus bens para a caridade, afinal, se a pessoa quer maldizer qualquer característica do capitalismo, para ter coerência, deve se desvincular completamente do sistema? Deve fazer voto de pobreza, então? Carro, telefone, mobília, eletrodomésticos, livros... Tudo está contaminado com a saliva de satã? Ele não pode mais andar de carro, nem de ônibus, pois foram feitos por empresas particulares e pertencem ao capital? Locomoção, agora, só a pé? Morar em prédio ou casa? Não dá, pois essa arquitetura absolutamente funcional é capitalista, além de serem construídas pelo proletário explorado em benefício de porcos capitalistas? Comida? Só proveniente diretamente do que ele mesmo plantar? TV, música e filmes? Malditas sejam todas as emissoras, gravadoras e distribuidoras? É isso?

Para ser coerente, tem que fazer como o protagonista do filme "Na natureza selvagem", mas, mais esperto, ir para um cenário como o de "Lagoa Azul"? Tudo que tenha respingo da sociedade capitalista não lhe diz mais respeito?

E não se diga que esses exemplos são muito extremos, pois a própria crítica inicial, de exigir que a pessoa de esquerda não se conecte e não possua bens, já é o cúmulo do absurdo em si.

Criticar os que se indignam (não os seus argumentos), no fim das contas, é servir aos interesses de quem? Trata-se de um argumento que vem a calhar para a direita mais conservadora e reacionária, pois exige que os esquerdistas lutem desarmados, sem as ferramentas apropriadas no contexto atual, o que, convenhamos, é bem covarde. Essas formas de desestimular a indignação são de arrepiar, pois pessoas mais mal informadas às vezes tomam sua posição tendo em vista a opinião desses pseudo-comentaristas que, ao contrário de pecarem pela ignorância, escolheram deliberadamente defender o lado do opressor nos conflitos sociais. Esse pensamento é tão chulo quanto exigir que fuja de casa o adolescente que critica determinados comportamentos dos pais, ou pretender que obrigatoriamente peça demissão o funcionário que discorda do modo como o patrão está conduzindo os negócios.

Mas a boa notícia é que esses esquerdistas "incoerentes" estão se espalhando como pragas! Mais um pouco e eles vão estar promovendo distribuição de renda e justiça social, e, pior, de dentro, usando-se do próprio sistema capitalista, que absurdo!

Aliás, a Primavera Árabe, os movimentos Occupy, e as manifestações gregas e espanholas tiveram como locomotivas as redes sociais. 

Na verdade, nenhum esquerdista minimamente sério nega progressos e benefícios do capitalismo, mas se comove com a quais custas eles são forjados e a quem eles são primordialmente direcionados.

Interessante ver que todo mundo, hoje, critica o capitalismo - os presidentes do Citigroup e do próprio FMI, o Warren Buffet, o Bill Gates, até a liderança do partido republicano dos EUA- e os esquerdistas que têm uma conta no Facebook, um carro e um iPhone é que são irritantemente incoerente?

Então, se for começar uma discussão séria e madura sobre política ou direitos humanos, por favor, evite esse tipo de argumentação chula e vergonhosa, que procura, jogando para a plateia um cínico e velho truque, achar no “oponente” algo que supostamente o desabone, em vez de atacar os seus argumentos (“argumentum ad hominem”). Isso sem contar outras afirmações ridiculamente infantis, tipo “Cuba é uma porcaria, a China é totalitária e a União Soviética fracassou, então, logicamente, o capitalismo neoliberal é justo e maravilhoso” ou "É contra o capitalismo? Vá pra Cuba!". Sinceramente, para quem não sabe ir mais longe do que isso, o silêncio é uma boa opção, mas eu recomendo mesmo é um estudo mais aprofundado do assunto em debate para fugir desses impensados lugares-comuns.

P.S.: Por acaso, achei este texto, extremamente coerente, a respeito do assunto: Direita volver: A caduquice do franciscanismo de esquerda.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"Deus seja louvado" nas notas de real


Triste ver que tem gente ilustrada se manifestando na mídia contra os avanços do Brasil na conquista do Estado laico.
Ives Gandra, prestigiado jurista, escreveu recentemente sobre a retirada dos dizeres: "Deus seja louvado" das notas de real. (Estado laico não é Estado ateu). 
Porém, toda a argumentação que ele usa, intencionalmente ou não, esconde uma grande falacia, uma vez que ele apresenta um conceito de laicidade do Estado muito próximo ao de religiosidade de Estado. Ao afirmar que o fim dessa expressão nas notas de real significará a "vitória de uma minoria ateia", o jurista, em verdade propõe uma ditadura da maioria. E, como se sabe, uma democracia se mede exatamente pelo nível de respeito que se tem em relação às minorias. Uma vitória da minoria ateia seria, sim, se a atual inscrição passasse a "Deus não existe" ou algo do gênero. É exatamente por essa razão que a Constituição Federal impõe a laicidade ao Estado, para que nenhuma crença seja exaltada em detrimento de outra ou de crença nenhuma. 
Estado laico é neutro em relação à questão religiosa, não tomando qualquer partido e baseando as suas políticas nos interesses sociais e políticos, e nunca em qualquer orientação religiosa. 
E mais: dentre os inúmeros deuses nos quais os cidadãos acreditam, qual "Deus" será aquele a ser louvado, conforme inscrito na moeda?
Por fim, se é para adotar a ditadura da maioria, em última análise proposta pelo jurista, por que não colocar na moeda também algo do tipo "Viva o Corinthians e o Flamengo", afinal, a maioria da população torce para um desses dois times? Se não é tão difícil manter a neutralidade do Estado quando se trata de time de futebol, por que é tão difícil as pessoas aceitarem a neutralidade religiosa (laicidade)?
Sobre o assunto, há outro texto muito bom, cuja leitura recomendo fortemetne para quem quer se inteirar melhor da questão, do jornalista Carlos Orsi: Analisando as principais críticas à proposta.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Apolítico


"Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história." (Antonio Gramsci - La Città Futura)

O Apolítico sabe um pouco de política e, exatamente por não saber muito, faz questão de se abster do debate. Mais do que isso, taxa todos que tomam partido de radicais, bitolados, comunistas, nazistas ou algo do tipo. 
Esse Apolítico ainda acredita no homem virtuoso de Aristóteles (descrito no livro "Ética a Nicômaco"), que vive no meio-termo. Ele se mantém sempre em cima do muro. É supostamente neutro ou do centrão nebuloso. Ou, pior, coloca-se acima de todo o processo, achando que todos que tomaram posição não analisaram a situação tão bem quanto ele. Considera o fim da picada a tomada de posição pública e a defesa de ideias polêmicas.
Esquece-se, portanto, das lições mais básicas de Maquiavel, segundo as quais na política quem não toma partido é dominado pela política dos que a tomam e se manter inerte diante de uma injustiça é escolher o lado do opressor. Acredita que a humanidade não evolui, mas é cíclica, ignorando o suor e sangue derramados de milhões de pessoas que sofreram ou morreram lutando pela melhora de sua condição de vida. Pensa que hoje não existe diferença entre esquerda e direita. Aliás, ele cultua a política bipartidária dos EUA, onde, eleito, um republicano em nada se diferencia de um democrata e vice-versa, já que sempre há a tendência de se encaminhar para o centro.
A impressão que eu tenho é a de que o mais "cult", o mais esclarecido e descolado, hoje, é ser como o Apolítico, mantendo essa aparência de ponderação, de que tudo tem a sua devida e justa razão, como se tudo fosse apenas questão de opinião e como se fosse uma fraqueza tomar partido ou pender para um lado. Manter-se calado ou emitir opinões neutras é sinal de virtuosidade, o resto é fanatismo ou vício de percepção puro e simples. Quantos debates riquíssimos são abortados por esse novo zeitgeist?
Em geral, o Apolítico não usa as palavras capitalismo, neoliberalismo, consumismo, individualismo, nem dominação, por serem pretensamente ideológicas. Prefere os insossos "pós-modernidade", "globalização", "era pós-industrial", "geração facebook" ou "atual sistema econômico". Ele acha que o fim da história anunciado por Fukuyama chegou, a era de lutas sociais para conquista de direitos já passou, sendo essa modernidade excludente “irreversível”. Fala em "hipossuficiente", não em pobre ou explorado, acreditando se tratar de um termo técnico que não serve especificamente a nenhum interesse. Acha até bonitos os movimentos como Ocuppy Wall Street e a Primavera Árabe, mas logo infere que no Brasil não há qualquer razão para revoltas, exceto em relação à corrupção, falta de educação e altos impostos e encargos (gosta muito de culpar a legislação trabalhista pelo insucesso dos empresários).
Muitas vezes (para não dizer sempre) o Apolítico é contraditório. Ele odeia o PT por causa da corrupção e do Bolsa-Família, mas não hesita em sonegar impostos e aproveitar a redução de IPI para trocar de carro e de geladeira. Preocupa-se com o desemprego apenas para falar mal da legislação trabalhista, que supostamente dificulta a criação de empregos formais (basta ver os argumentos da classe-média contra os direitos das domésticas). Ele, por não enxergar que o ateísmo sim é a posição mais neutra possível em relação à religiosidade, afirma não acreditar no deus cristão, mas em uma força superior, pois pensa que ali ele encontrou o perseguido "meio termo" ideal. Ele consegue acreditar que responsabilidade social se resume a ter um projeto de plantar árvores, usar papel reciclado ou ajudar um asilo, não vendo nada de errado na poluição (o aquecimento global é apenas invenção dos eco-chatos), na política de incentivo ao uso de carros, no descumprimento de direitos trabalhistas e previdenciários. Para o Apolítico, é justo que o Gusttavo Lima e o Neymar ganhem mais de milhões e milhões por mês enquanto outras pessoas se esfolem de trabalhar dia e noite para mal conseguirem pagar o aluguel. É tudo questão de meritocracia, afinal. Ele fala mal dos hábitos deploráveis do povão, mas joga a bituca de cigarro no chão. Ele é educado com as visitas e com seu chefe, mas não com os atendentes, garçons, pedestres ou empregados.
Uma habilidade o Apolítico tem de sobra, que é a de se alienar achando que está se informando e se esclarecendo sobre o mundo à sua volta. Ele lê a Veja sabendo que ela tem fama de tendenciosa, mas, analisando as matérias, por concordar passivamente com tudo o que está escrito, acha um exagero dizer que a revista seja partidária, pois não consegue identificar como e o quanto ele está sento manipulado pela linha editorial de extrema direita. Chega a pensar que o Jornal Nacional é imparcial. Em estágio terminal, o Apolítico é capaz de, até para não polemizar, concordar com quem diz que "direitos humanos são só para humanos direitos", afinal, a frase tem algum sentido para ele.
O Apolítico é o que menos contribui ao debate, a meu ver. Respeito muito mais alguém convicto, mesmo que tenha opinião radicalmente oposta à minha opinião (vide meus arranca-rabos até com nazistas declarados via comentários no Facebook), mas disposto a discutir (utilizando o método socrático para engrandecer suas razões, pondo à prova a sua posição), do que esse outro descrito acima, que toma sempre o atalho mais fácil, menos dispendioso, menos custoso. 
Enfim, o Apolítico é, em verdade, um anti-político, afinal, política de verdade é feita para mudar os rumos da sociedade, e o que o Apolítico pretende, no fundo, é manter as coisas como estão, já que, evidentemente, como parte da classe dominante, beneficia-se do sistema.
Mais do que isso, até um tempo atrás eu mesmo tinha um perfil parecido com esse, mas quando comecei a procurar saber as razões dos dois lados da moeda de forma mais aprofundada - conversando com pessoas dos dois lados, lendo muita coisa a respeito também dos dois lados - a tomada de posição foi inevitável, a pílula vermelha, e não a azul (será coincidência a escolha das cores no Matrix?), já tinha sido ingerida sem que eu percebesse. E era, isso sim, irreversível.

(Atenção: O texto acima é uma ironia. Não foi feito para ofender pessoalmente ninguém. Claro que nem todas as pessoas que preencham uma ou algumas características acima são necessariamente apolíticas. Trata-se de uma generalização intencional, com a devida licença poética, mesmo não se tratando de um texto lírico.)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Périplo desumanização na Justiça

Hoje passou por mim um processo que me chamou a atenção por alguns motivos:
1) O réu era um dos maiores BILIONÁRIOS do Brasil, que NÃO QUERIA PAGAR HORAS EXTRAS e indenização por dispensa em período de estabilidade PARA O CASEIRO que trabalhara 18 anos naquele emprego...
2) O processo teve início em 2003, tendo feito aniversário de 9 anos em agosto último, o que na Justiça do Trabalho é raro. Isso porque o caseiro era idoso e havia prioridade de tramitação.
3) O advogado do caseiro, na petição inicial, registrou que seu cliente tinha adquirido uma doença em decorrência do trabalho, mas simplesmente não disse qual era a doença, limitando-se a dizer que por estar doente ele tinha direito a indenização por tais e quais artigos da lei. Ou seja, transformou o trabalhador em uma coisa, um nada, como se não fosse uma pessoa, mas sim um objeto sobre o qual incidem algumas leis. O que ele tinha, o mal que lhe afligia, pouco importava, já que o importante é que tinha um dinheiro a receber.

Fiquei pensando em como a sociedade trata e destrata essas pessoas. Elas são reiteradamente desumanizadas por todos os lados. Primeiro no trabalho, já que o patrão, mesmo tendo dinheiro de sobra, não cumpre com os deveres legais mínimos de respeito a sua condição humana. Depois, pelo advogado, que os trata como coisa. E, por fim, pela própria Justiça, que os penaliza com uma espera de longos anos para receber o bendito dinheiro que lhe é devido...

Se fosse um caso isolado não seria um grande problema. Mas o fato é que o Périplo do "hipossuficiente" (não se engane: leia "pobre") é árduo e ingrato.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

11 de setembros mundo afora

É interessante ver o pessoal colocando no Facebook homenagens aos EUA no 11 de setembro, pois nunca vi ninguém homenagear o Japão nos aniversários das bombas atômicas, o Vietnã e o Afeganistão nos aniversários da guerra naqueles países contra os estadunidenses, o Iraque nos aniversários da(s) invasão(ões), o México no aniversário do roubo do território correspondente ao Texas, nem o resto do mundo nos aniversários da Base de Guantánamo ou da eleição de Ronald Reagan, etc.
Nada contra as famílias que perderam entes queridos há 11 anos, lamento por elas, mas o fato é que o atentado foi consequência quase que lógica da política bélica, unilateral, imperialista e ultra-liberal dos próprios EUA.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Repulsa aos EUA e ideologia


Incrível como hoje ainda há pessoas que defendem os Estados Unidos de forma aguerrida, como se  eles tivessem uma história invejável, uma sociedade exemplar, uma política externa excelente e uma economia poderosa e livre, como manda a cartilha.

Para quem pensa dessa forma, o antiamericanismo parece ser uma infantilidade, coisa de moleque, uma idéia que se tornou antiquada e contraproducente. Em vez de ficar reclamando disso e daquilo, deveríamos tentar imitá-los para atingir o crescimento e desenvolvimento econômico, pois os EUA são o exemplo máximo de nação bem sucedida. Será? E o antiamericanismo sentimento de repulsa aos EUA é só um preconceito bobo?

Pois bem. Dia desses eu estava navegando no Facebook e me deparei com uma foto do Ronald Reagan e uma citação sua: 

I believe the Best social program is a job.

A legenda (não sei como, em português mesmo) dizia:

"Putz, isso devia ser implantado aqui."

Consternado com o que via, pois foi justamente o Reagan quem implementou o neoliberalismo nos EUA e, por conseqüência, no mundo inteiro, desmontando aos poucos o Estado de Bem Estar Social arduamente conquistado pela humanidade às custas de muito suor e sangue - que levou a uma evolução na racionalidade internacional a fim de evitar a repetição dos desastres das guerras, sabidamente causadas pelas inconsequentes desventuras econômicas e sociais das nações mais ricas - não resisti e teci algum comentário crítico. Iniciou-se um debate a respeito da política, economia e sociedade dos Estados Unidos e sua repercussão no Brasil e no mundo. Confesso que fiquei chateado de ver que pessoas esclarecidas vêem nesse homem, conservador ao extremo, um herói.

O responsável pelo post chegou a afirmar também, como todo bom representante da classe média paulista, que os programas sociais servem mesmo é para sustentar os vagabundos, e, expressamente, bradou que a culpa é mesmo do pobre que não se esforçou (sim, foi uma conversa memorável), além de fazer questão de afirmar que está na faixa de renda que paga mais impostos.

Em determinada altura da discussão, o meu colega e a essa altura adversário disse que os EUA estavam certos em invadir países alheios, que se fosse qualquer outra nação que tivesse o poder que eles têm o resultado não seria diferente, e que qualquer um toma providências "quando tem o quintal invadido". Disse, ainda, que não se referia com aquela afirmação ao Iraque, mas ao Afeganistão, e que, de qualquer maneira, o Saddan não era santo e que é a favor hoje a uma invasão do Irã(!).

A esse comentário último eu não resisti e precisei responder resumindo os motivos pelos quais eu não simpatizo nem um pouco com os Estados Unidos. Nada contra os cidadãos e as pessoas propriamente, mas a história, a cultura, a forma de pensar e de agir deles, enfim, o "espírito estadunidense", são o que incomoda.

Respondi, então, da seguinte maneira:

Se um líder não é santo, então, surge automaticamente o direito unilateral da maior potência econômica, política e militar do mundo invadir o país e liberá-lo do mal. Lógico que isso não vale para eles próprios nem para os aliados Israel, Arábia Saudita, Paquistão, Iêmem, Jordânia, Uzbequistão, Baharein, Cazaquistão, China, etc., afinal, dinheiro não tem cheiro. Aliás, santo mesmo foi o Mubarak, o Kadaffi ou o Assad, que não mereceram o mesmo destino de Saddan apesar de terem aberto fogo contra seu próprio povo.
Mas tem razão. Se prestarmos bem atenção nos filmes hollywoodianos os EUA são sempre os mocinhos. E eu não tinha percebido! Acho infantilidade minha ficar com essa bobagem antiquada de antiamericanismo em plena era da globalização.
Eu estava, na verdade, superestimando alguns fatos como:
  • A crença no "destino manifesto", segundo o qual os EUA são o povo escolhido por deus para comandar a humanidade. Aqui reside o erro da argumentação de que “qualquer nação faria o mesmo” (como se o fato de todo mundo fazer tornasse algo correto). Aliás, o próprio nome do país já indica uma pretensão absurda, pois indica que eles se consideram toda a América, os estados unidos da América, como se não existisse mais nada ao sul ou ao norte.
  • As doutrinas políticas imperialistas, de dominação dos países mais pobres, como a Doutrina Monroe, a Diplomacia Missioneira, a Diplomacia do Dolar, a Política da Boa Vizinhança, a Doutrina da Segurança Nacional, a Segurança Hemisférica (todos decorrência do “destino manifesto”).
  • O roubo do terreno mexicano (Texas).
  • As políticas de extermínio dos indígenas e nativos. (Benjamim Franklin falava em "estirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores de terra").
  • A existência de bases militares espalhadas por todo o mundo, o que indica a mentalidade bélica e as pretensões imperialistas.
  • As bombas atômicas (que foram extremamente necessárias em locais habitados, para livrar o mundo dos loucos japoneses).
  • Os embargos econômicos avassaladores. 
  • A invasão pura e simples ou intervenção, já no Século XX, sobretudo para depor líderes legítimos, na América Latina (Caribe, Cuba, Panamá (onde forjaram uma guerra separatista), República Dominicana, Nicarágua (onde invadiram), Haiti, Guatemala, México).
  • A implantação e o apoio a ditaduras no Chile, Paraguai, Argentina, Uruguai.
  • A aprovação de armas nucleares obtidas por seus aliados e o ataque a qualquer sinal de enriquecimento de material nuclear nos demais países.
  • A não intervenção na Líbia e na Síria, deixando milhares morrerem (pactos internacionais autorizam a intervenção humanitária, nesses casos).
  • A ameaça ao Irã e a invasão do Iraque, paralelas a alianças com os Talebãs (depois desfeita convenientemente), com a Arábia Saudita, Iêmem, Jordânia, Uzbequistão, Baharein e Cazaquistão, todas ditaduras tão ou mais cruéis que a daqueles dois países.
  • A negação a ratificar diversos tratados de direitos humanos.
  • O cerceamento reiterado do direito de greve e à liberdade sindical dos trabalhadores.
  • A Promiscuidade entre igreja e Estado.
  • O Patriot Act, que cerceou direitos civil individuais.
  • A crise de 2008, que teve origem nos EUA, pela falta de regulação da atividade dos bancos.
  • A presença da maior indústria bélica do mundo.
  • As fraudes nas eleições, respaldadas pela Suprema Corte.
  • A mídia comprada, manipulada pelos conservadores. 
  • A base de Guantánamo (que envergonha toda a raça humana).
  • A inexistência de programas sociais.
  • A maior população carcerária do mundo. (0,8% da população está atrás das grades).
  • A não assinatura do Protocolo de Kyoto.
  • O fato de serem, disparados, o país desenvolvido mais desigual do mundo.

Quanto ao Brasil, tenho dó mesmo da classe média brasileira. Vou esquecer das minhas aulas de Direito Tributário, em que aprendi que no Brasil quem paga mais impostos proporcionalmente à renda são as pessoas mais carentes, afinal, os impostos nos produtos básicos de subsistência, como arroz, detergente e sabonete, são extremamente maiores do que dos bens duráveis. (só pra exemplificar: dados de 2008 do IPEA: quem ganha até 2 salários mínimos destinou 54% a tributos. Quem ganha 30 salários mínimos ou mais, destinou em média 29%).
Dar dinheiro pra montadora (reduzindo o IPI) pode (pois estimula o consumo!). Dar dinheiro para universidades particulares alienarem ainda mais os seus alunos (o governo perdoou a dívida dessas instituições) pode. Bolsa Família, que muitas vezes significa a diferença entre a fome extrema, a morte, e a vida, além de fomentar o desenvolvimento econômico nas áreas mais pobres, não pode (pois “apenas” garante a subsistência dos mais necessitados). Certo mesmo é dar dinheiro para os bancos que estão falindo, como fez os EUA com o Brothers. Afinal, o banco faliu não porque é incompetente, mas a pessoa que nasceu na miséria e não arruma emprego, essa sim é incompetente. E outra, o milionário que inventa pirotecnias tributárias para sonegar impostos não está, por razões muito menos nobres (diga-se, que não envolvam o sustento direto seu e de sua família), também mamando nas tetas do "governo", gozando do seu rico dinheirinho pago em impostos?
Esse senhor da foto, e da frase “genial”, é um herói, juntamente com os Bush e a Margaret inglesa. Afinal, ele diminuiu a importância do Estado, favorecendo o crescimento de empresas monopolistas, bancos altamente especulativos (o que desencadeou a crise de 2008), em detrimento da chamada economia real, multiplicou por 15 a desigualdade social em 10 anos, transferiu a maior carga tribútária dos ricos para os pobres (ler o Nobel de Economia Paul Krugman), etc. Hoje, 400 pessoas sozinhas têm a mesma renda de metade (50%) do povo dos EUA graças a esse visionário! A diferença entre o salário do operário e do patrão cresceu de 42 vezes (em 1982) para 325 vezes (em 2010 e subindo). O individualismo e o consumismo floresceram como nunca. Enfim, sucesso absoluto! Isso realmente deveria ser aplicado aqui, como você comentou! 
Pensando bem, acho que eu vou me mudar para os EUA, porque a simples adoção impensada do American Way of Life pelos meus compatriotas não está bastando à minha sede de "vencer na vida", ou seja, ter dinheiro para comprar uma mansão, um iate e dois ou três Bugattis.
Sem zoeira, você disse que o neoliberalismo tem defeitos mas é o melhor que se tem. Eu, por minha vez, digo que não há dúvidas de que esse seja o pior sistema sócio-econômico já forjado para a humanidade - e podemos incluir a escravidão (pesquisas revelam que as diferenças de condições de vida nos estados escravistas entre o escravo e o senhor eram muito menores do que hoje) e a servidão (ao contrário do que se pensa, o senhor feudal nunca foi rico) neste bolo. Só espero que isso seja percebido logo, porque, como se vê nos jornais diariamente, nem o capitalismo o está aguentando mais."
Obviamente, nenhum de nós dois se convenceu de nada do que o outro disse, mas pelo menos foi uma discussão que valeu a pena, pois me fez reavivar na memória a maioria dos motivos pelos quais os EUA, enquanto país, são tão amados e odiados. E também me fez entender um pouco mais qual a força da ideologia tanto nas atitudes mais importantes das nações como em atitudes corriqueiras como um mero post  ou comentário no Facebook.

sábado, 1 de setembro de 2012

Os sem-teto e a ignorância

Excelente matéria da Folha retratando as dificuldades cotidianas dos sem-teto, em especial, a batalha de uma aluna para simplesmente ir à escola:

Desalojada, filha de sem-teto luta para ir à escola em SP

Mas o que mais impressiona são os comentários absolutamente preconceituosos e ignorantes que os leitores fazem da matéria. 


Em geral, dizem não querer o dinheiro
que pagam em impostos sustentado "vagabundo", que a culpa é dos pais das crianças, que é necessário o controle de natalidade para os pobres, e, finalmente, que "é errado invadir a propriedade dos outros". Mas heim???


Será que esses "comentaristas" não vêem que aquelas pessoas foram jogadas para fora do sistema social, e que muito mais "errado" é o dono de um prédio urbano inteiro manter o local desocupado e sem nenhum uso, para fins únicos de especulação imobiliária, enquanto ao lado vivem milhares de famílias sem ter onde morar, passando fome, frio e toda a sorte de necessidades?


A moradia é um direito fundamental (artigo 6º da Constituição Federal). E, como se não bastasse, toda propriedade privada só pode existir se utilizada conforme a sua função social (artigos 5º, inciso XXIII, 170, 182, 184 e 186, todos também da Constituição, além do artigo 8º da Lei n.º 10.257/2001).
Abandonar a propriedade, sem qualquer dúvida, é desviar a sua finalidade maior. Os governos podem e devem, tal como alguns já fazem (ver decisão proferida no Processo 1.0000.00.271812-0/000(1), da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais), desapropriar esse tipo de habitação sem uso, garantindo indenização ao dono, para, entregando-a aos excluídos, restabelecer o seu real sentido. 


Em suma: a ocupação de terras e prédios abandonados é um bravo ato de cidadania! Merecem apoio total aquelas famílias, que estão apenas fazendo valer os seus direitos.

Sobre o assunto, ainda, ver o documentário "Eu existo", do Centro Acadêmico XI de Agosto:

Documentário "Eu existo"
 

terça-feira, 24 de julho de 2012

Compromisso da Globo

As Olimpíadas estreiam amanhã, com alguns jogos, sendo a abertura oficial na sexta-feira.
Enquanto isso, na Globo, o "Esporte Espetacular" tratou do crescimento do futebol chinês e fez uma reportagem com Galvão Bueno sobre o Penta-Campeonato.
Já no "Globo Esporte", Thiago Leifert estava falando do Santos e quando ia falar o motivo pelo qual Neymar estava ausente (pois ele é um dos convocados da Seleção Olímpica), acabou apenas dizendo que faltavam seis jogos para o meninão voltar à Vila Belmiro.
Em ambos os casos, nenhuma palavra sobre as Olimpíadas, o maior e mais bonito evento esportivo do mundo.
Esses são o compromisso com a informação, a imparcialidade e a responsabilidade social da Rede Globo de Televisão.
(Fonte: Folha de São Paulo de hoje, página D10)

Prefácio da Tese de Láurea


Resolvi postar aqui o prefácio da minha "teste de láurea" (ou TCC, entregue em outubro de 2011), em que eu contextualizo resumidamente o momento sócio-político vivido, pressuposto para a elaboração e entendimento das ideias defendidas no corpo do trabalho. 

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O mundo hoje está em transe. A inflamável lógica do capitalismo, do consumismo e do individualismo, de pavio aceso há tempos, parece finalmente ter explodido na grande crise econômica em que imergimos[1].
PAUL KRUGMAN, influente economista estadunidense ganhador do Prêmio Nobel, defendendo que os ricos arquem com a sua parte do “contrato social”, do qual são os mais beneficiados, afirmou recentemente que “o ataque sustentado ao movimento sindical organizado e a desregulamentação financeira criaram fortunas enormes, ao mesmo tempo em que abriram caminho para o desastre econômico.”[2]
Comentando os recentes motins populares que atingem a Inglaterra e outros países desenvolvidos, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, descreve e critica o vigente neoliberalismo, que, segundo afirma, alimenta-se da desigualdade e do individualismo criados. Nas palavras do sociólogo português:

“Com o neoliberalismo, o aumento da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução. A ostentação dos ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a maioria dos cidadãos porque estes supostamente não se esforçam o suficiente para terem êxito.
Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários.
Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa; quando isso sucede, nunca é reconhecida como merecida. Por outro lado, na sociedade de consumo, os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm como quando não se têm.
Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para obtê-lo vai um passo muito curto. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, acabam nas prisões.”[3]

De fato, os recentes protestos no mundo desenvolvido, embora alguns queiram acreditar que as causas são de insatisfações meramente individuais, na verdade demonstram o grau de indignação das pessoas perante a socialização dos prejuízos sociais e econômicos que tem havido. É dizer, as grandes corporações e bancos de investimento, sem qualquer tipo de culpa, adotaram procedimentos escusos para aumentar seus ganhos, inflando uma bolha especulativa de proporções globais que, ao estourar, está sacrificando toda a coletividade, de modo a acelerar o derretimento do Estado de bem-estar social construído no pós-guerras.
A injustiça dessas práticas é tão patente que até aqueles amplamente beneficiados pelo sistema econômico atual estão insatisfeitos com a atual situação socioeconômica que lhes surge à vista. Figuras como o empresário estadunidense WARREN BUFFET, que aparece sempre nos primeiros lugares dos rankings de pessoas mais ricas do mundo[4], têm defendido uma maior distribuição de renda. Em artigo recente para o jornal The New York Times, BUFFET defendeu que a fortuna dos mega-ricos deve ser mais tributada, argumentando que tal política financeira é muito mais propícia a gerar empregos, tal como o foi em seu país nas décadas de 80 e 90. Segundo afirma:

“Our leaders have asked for ‘shared sacrifice.’ But when they did the asking, they spared me. I checked with my mega-rich friends to learn what pain they were expecting. They, too, were left untouched.
While the poor and middle class fight for us in Afghanistan, and while most Americans struggle to make ends meet, we mega-rich continue to get our extraordinary tax breaks. Some of us are investment managers who earn billions from our daily labors but are allowed to classify our income as “carried interest,” thereby getting a bargain 15 percent tax rate. Others own stock index futures for 10 minutes and have 60 percent of their gain taxed at 15 percent, as if they’d been long-term investors. (...)
People invest to make money, and potential taxes have never scared them off. And to those who argue that higher rates hurt job creation, I would note that a net of nearly 40 million jobs were added between 1980 and 2000. You know what’s happened since then: lower tax rates and far lower job creation. (...)
If you make money with money, as some of my super-rich friends do, your percentage [of income paid] may be a bit lower than mine. But if you earn money from a job, your percentage will surely exceed mine — most likely by a lot. (...)
My friends and I have been coddled long enough by a billionaire-friendly Congress. It’s time for our government to get serious about shared sacrifice.”[5]

Se os mais beneficiados por um determinado modelo vêem com nitidez a necessidade de mudanças, por mais que confessadamente com o intuito de dar continuidade ao próprio modelo que os contempla, temos um sinal claro de que há transformações em curso, e não se pode ficar alheio a esse movimento, seja qual for o objeto de estudo, especialmente se inserido na grande área das Ciências Humanas, na qual se insere o Direito.
No plano político-jurídico, o reflexo desse ambiente tão corrosivo é, pelos mais diversos motivos de ordem política e econômica, o tolhimento de direitos dos cidadãos comuns, sempre dolorosamente conquistados.
Mais pontualmente no âmbito do Direito do Trabalho, é como se surgisse mais um argumento em favor da precarização da relação de trabalho, ganhando um ponto quem defende a lógica liberal, do trabalho como mera mercadoria, do trabalhador como número, dos direitos trabalhistas como gastos a serem subtraídos até que impere a simples lei da oferta e da procura.
Especificamente no Brasil, por questões históricas e culturais, longe de estar despertando alguma solidariedade, o momento é simplesmente de reação dos beneficiários do sistema econômico vigente. O discurso é sempre o da desoneração de folha de pagamento, do alto preço da mão de obra, do excesso de direitos e benefícios, da não intervenção do Estado de nenhuma maneira nos negócios particulares[6].
É necessária, pois, uma contrarreação do Direito frente a essa postura irresponsável daqueles que determinam os rumos de nossa sociedade. Quem deve pagar pelos erros e acertos do empreendimento econômico é aquele que assumiu os riscos, o empresário[7], e não os trabalhadores. O Direito do Trabalho é um instrumento direcionado a implementar justiça, e não a perpetuar pobreza e desigualdades.
Como se verá, há toda uma hermenêutica constitucional voltada à interpretação dos direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais, predominando em praticamente quaisquer circunstâncias. Como afirma o eminente constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA, “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano, sobre todos os demais valores da economia de mercado”[8]
O empresário, então, dada a necessidade de competição voraz, criada e sustentada pela lógica predominantemente concorrencial, consumista e individualista, tende a adotar práticas que, na busca por maiores lucros através do corte de custos, colocam em risco a integridade, a personalidade e a dignidade do trabalhador.
Devido a esse cenário de competição, tanto de empresários como dos próprios trabalhadores, típicos do neoliberalismo, surgem modelos organizacionais do trabalho desligados do ser humano e, portanto, altamente prejudiciais à dignidade dos obreiros e atuantes como se nenhuma norma trabalhista existisse. Os empresários, não podendo dominar a concorrência e o mercado no qual compete, exercem muitas vezes de maneira totalmente irresponsável o único poder que tem a seu alcance: a dominação do trabalhador a ele subordinado.
Em meio a tudo, a mídia em geral, de modo muito eficaz e sedutor, molda o pensamento das massas direcionando-as a acreditar que o sucesso e a virtude estão na dedicação aguerrida e estóica ao trabalho. Bombardeados pelo marketing e propaganda, os trabalhadores vêem no consumo frenético e desmedido a sua verdadeira identidade. Para MARILENE CHAUÍ, “a propaganda tenta garantir ao consumidor que ele será, ao mesmo tempo, igual a todo mundo e não um deslocado (pois consumirá o que os outros consomem) e será diferente de todo mundo (pois o produto lhe dará uma individualidade especial)”[9].
Com razão, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS afirma categoricamente que “o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana”[10].
Tem-se, assim, um atropelamento da condição humana. Dentro da lógica da concorrência feroz dos próprios colegas de trabalho, a produtividade do profissional é altíssima, mas apenas até o momento em que ele se esgote totalmente, quando, não estando mais apto àquela atividade, é dispensado do mercado de trabalho, não raro servindo como exemplo de fracasso. É a lógica do lucro engolindo as pessoas. Até a família é atingida, pois os pais, imersos nesse habitat desumano, moldam as crianças para esse cenário sombrio, tolhendo delas o tempo, fazendo-as trocar as saudáveis brincadeira pelas mais diversas aulas e atividades que desde logo moldam o futuro cidadão treinado para produzir e para consumir.
Enfim, a ganância atropela a moral, a ética e o respeito.
Para a professora aposentada de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo e de Sociologia do Trabalho da Fundação Getúlio Vargas, EDITH SELIGMANN-SILVA, a nova geração de tecnologias tem sido muito prejudicial aos trabalhadores, que se vêm cada vez mais pressionados a abandonar suas próprias vidas em dedicação ao trabalho. Afirma a professora:

“À medida que se expandiu a implantação da automação, dos processos computadorizados e de tecnologias de ponta, de modo geral, novos problemas e novas necessidades foram sendo identificadas tanto porque tais tecnologias demandam outras modalidades de ‘participação mental’ no trabalho, quanto porque as correlações de poder capital-trabalho têm evoluído de modo desfavorável para os assalariados. Assim, paralelamente ao desenvolvimento técnico e ao crescimento econômico de muitos países, começa a surgir também questionamentos do que vem acontecendo nos contextos de trabalho e em relação ao meio ambiente: a dominância de princípios e lógicas econômicas que contrariam prioridades de ordem ética como o respeito à dignidade humana.”[11]

É nesse contexto de preocupação com os efeitos deletérios às estruturas sociais dessa postura dos empresários em detrimento dos trabalhadores, imposta pelo capitalismo, que se insere este trabalho, neste momento de contrarreação à extirpação de direitos dos trabalhadores, em que novas práticas empresariais são cada vez mais voltadas à exploração do trabalhador como mero insumo do processo produtivo[12].
O ordenamento jurídico reconhece a maior fragilidade do trabalhador face ao empregador, contemplando o Direito do Trabalho como ramo que cuida das normas reguladoras dessa relação de trabalho, visando basicamente à proteção dos obreiros. A Constituição Federal expõe um pródigo rol de direitos sociais tidos como fundamentais. Essa proteção aos trabalhadores ganha mais sentido e importância nos tempos atuais de reação neoliberal.
Este trabalho, partindo desse pressuposto contexto socioeconômico e dos objetivos da Constituição da República, que ampara a dignidade humana e a busca pela justiça social, visa a expor um instrumento eficaz de justiça, que é a responsabilização civil do empregador pelo mero descumprimento de norma trabalhista.
É fato que muitas das normas trabalhistas, como direitos fundamentais dos trabalhadores que são, ao serem desrespeitadas violam não apenas o direito ou o patrimônio dos trabalhadores, mas a sua personalidade, sua dignidade e integridade. Não é difícil se vislumbrar a gravidade dessa situação quando se tem em mente, por exemplo, que muitas empresas adotam a prática de exigir jornadas de trabalho muito acima do limite legal ou de exigir que o empregado esteja disponível “full time”, de descumprir normas de higiene, medicina e segurança do trabalho, de atrasar salários (tido o recebimento do salário como o direito fundamental que sustenta os outros direitos fundamentais do obreiro) de forma contumaz, de sonegar verbas rescisórias e assim por diante.
Para haver dano moral é necessário que haja um dano considerável à integridade da pessoa. Estando presente esse dano e demonstrado o seu nexo causal com a conduta do agente, no caso, a empresa que descumpre normas trabalhistas, pode-se dizer que juridicamente surge o dever de reparar o trabalhador, seja in natura, seja por meio de indenização em dinheiro, sem prejuízo das indenizações trabalhistas, administrativa, e até das multas penais que coexistam.
Como se verá ainda, hoje é pacífica a aceitação do dano moral coletivo, também chamado de dano social, quando há abalo de direitos fundamentais transindividuais de toda a sociedade ou de determinada coletividade, de modo que a sua reparação se dá por meio de indenização tem caráter predominantemente punitivo e pedagógico.
Não estamos advogando pelo tratamento do empresário como bode expiatório por todas as mazelas do sistema no qual está imerso. O que se pretende é mostrar a possibilidade de uma aplicação nova para um instituto antigo, de modo a inibir o descumprimento de normas protetivas dos trabalhadores. Entendemos que se dá um pequeno passo na direção da busca por uma aplicação do capitalismo mais consentânea com os ideais buscados pela sociedade, expressos na Constituição Federal, de modo a tutelar devidamente a dignidade dos trabalhadores e perseguir a justiça social.


[1] George Magnus, conselheiro econômico sênior do UBS, Banco Suíço, uma das instituições que simbolizam o capitalismo, anunciou que a já esperada crise desse modo de produção chegou. Segundo afirmou: “O modelo econômico que conduziu o longo ‘boom’ dos anos 80 a 2008 quebrou. A crise financeira de 2008/09 legou uma crise do capitalismo única em uma geração, cujas pegadas podem ser encontradas em disseminados desafios à ordem política, e não apenas nas economias desenvolvidas.” (...) Essa crise do capitalismo estaria acontecendo “porque nosso modelo econômico e a definição de políticas não podem produzir crescimento sustentável, adequada formação de renda ou criação de emprego.” (MAGNUS, George. Financial bust bequeathes a crisis of capitalism. Financial Times, Set. 12 2011. Disponível em <http://on.ft.com/nFQSSE>. Acesso em 13 set. 2011).
[2] KRUGMAN, Paul. O contrato social. Folha de São Paulo, 24.9.2011.
[3] SOUSA SANTOS, Boaventura de. O caos da ordem. Folha de São Paulo, 16 ago.2010, p. A3.
[4] Segundo a revista Forbes. The World's Billionaires. #1 Warren Buffet. Disponível em <http://onforb.es/1acVTv>. Acesso em 30 ago. 2011.
[5] New York Times. Stop Coddling the Super-Rich. 14.8.2011. Disponível em <http://nyti.ms/o7dmB4>. Acesso em 30.8.2011. A Folha de São Paulo noticia também a elaboração de uma petição por milionários franceses em que eles pedem para pagar impostos mais altos a fim de preservar o modelo econômico atual: "Estamos cientes de que nos beneficiamos muito do modelo francês e do ambiente europeu, ao qual temos grande apego e que desejamos ajudar a preservar", dizem os signatários. Folha de São Paulo, Em carta, franceses ricos pedem para pagar mais imposto, 24.8.2011. Outra notícia digna de nota é a de que os bilionários estão se unindo para doar parte de suas fortunas à caridade. Bill Gates e Warren Buffet convenceram recentemente 40 deles a doarem metade ou mais de suas fortunas à filantropia. Folha Online. Bilionários americanos prometem doar metade das fortunas à caridade. Disponível em < http://bit.ly/bVEGVq >. Acesso em 8 set. 2011.
[6] Como mostra o professor SOUTO MAIOR, as tentativas de desregulamentação e flexibilização das leis do trabalho para atender a demandas econômicas não é nova, pois já em 1957 Hélio de Miranda Guimarães escreveu um artigo (LTr, edição 237) discutindo as idéia de Pinto Antunes sobre a necessidade de desaparecerem as leis que pressionariam o capital e limitam os lucros dos empresários. (SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A Fúria. In Revista  LTr, v. 66, n.º 11. São Paulo: LTr, 2002, p. 1288). De fato, o próprio professor SOUTO MAIOR se impressiona, nesse texto de 2002, com a força que ganhava os argumentos em favor da flexibilização do Direito do Trabalho, afirmando que “o que chama a atenção do cientista do direito não é a pretensa novidade que estas idéias traduzem, mas o fato de terem elas adquirido, de uma hora para outra, uma força dominante, significando, em abstrato, a supremacia da consciência econômica do direito do trabalho sobre a consciência social que se tinha sobre estes mesmos direitos.” (Ibid.)
[7] Assim coloca o artigo 2º da CLT: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.”
[8] SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 29.
[9] CHAUÍ, Marilena. Simulacro e Poder – uma análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 38.
[10] BOAVENTURA DES SOUSA SANTOS, Carta às esquerdas. Animal Sapiens. Disponível em <http://bit.ly/o8NXvf>. Acesso em 4.9.2011. Do ponto de vista de sua saúde mental, nessa situação de pressão constante e de violência psicológica, os obreiros passam a sofrer desgaste – perda da capacidade potencial e/ou afetiva, corporal ou psíquica –, corrosão do caráter –, alteração de valores e crenças, dissolvendo antigos laços de companherismo e solidariedade –, e expropriação –, coisificação, ou seja, a transformação de tudo em objeto, despojando inclusive as pessoas de seu caráter humano, do seu próprio eu. (SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011, p. 135-139.)
[11] SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011, p. 39.
[12] Nesse contexto de exploração, pesquisas relatam que os trabalhadores frequentemente se veem como escravos, animais, macacos‑amestrados, burros de carga, jegues. Além disso, criam a imagem de representação do trabalho como luta e guerra, inferno ou monstro misterioso, prisão. (Ibid., pp. 347-355.)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Nossa vidinha

Virou clichê dizer que as pessoas não só trabalham para viver, mas vivem para trabalhar. 

E no tempo em que não estão sendo exploradas no trabalho, são enganadas na igreja e infantilizadas em frente à TV.

É a nossa vidinha: "Está tudo bem, não tem do que reclamar. Além do mais, o mundo lá fora é hostil com quem fica questionando. Muito preferível o meu trabalho, o meu templo e o meu sofá."

Tudo é tido como legítima escolha pessoal. Bobo é quem, talvez por acreditar em um futuro que parece ter nos abandonado, não se entrega às seduções dessa realidade artificial, forjada e projetada para a nossa autocorrosão.

Como se fosse aceitável optar pela passividade de manter a situação do jeito que está. Como se a transformação e a mudança não pertencessem ao nosso tempo. Como se houvesse no curso da história humana algo de predestinado e imutável.

Os poderosos, exploradores, cada vez mais ricos, riem à toa da nossa pouca inteligência e falta de senso crítico, perdido em algum momento longínquo e ainda para ser resgatado. Continuarão extraindo a nossa dignidade, até que saiam as últimas gotas de suor e sangue. Tudo pelo trabalho.

Não ligo de usar clichês e, como o Bob Dylan, prefiro continuar acreditando que a resposta, meu amigo, está soprando ao vento.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Direito do Trabalho e a persistente mentalidade escravocrata



"Que fará um trabalhador braçal durante quinze dias de ócios?

Elle não tem o culto do lar, como ocorre nos paizes de climas inhospitos e padrão de vida elevado. Para o nosso proletario, para o geral do nosso povo, o lar é um acampamento - sem conforto e sem doçura. O lar não pode prendel-o e elle procurará matar as suas longas horas de inacção nas ruas.

A rua provoca com frequencia o desabrochar de vícios latentes e não vamos insistir nos perigos que ela representa para o trabalhador inactivo, inculto, presa facil dos instinctos subalternos que sempre dormem na alma humana, mas que o trabalho jamais desperta.

Não nos alongaremos sobre a influencia da rua na alma das creanças que mourejam nas industria e nos cifraremos a dizer que as férias operarias virão quebrar o equilibrio moral de toda uma classe social da Nação, mercê de uma floração de vicios e talvez, de crimes que esta mesma classe não conhece no presente.
Repitamos como o inclito Ford: - Não podereis fazer maior mal a uma homem do que permitir que folgue nas horas de trabalho.
O proletário é, pois, um elemento da collectividade social que as féias estragarão."
(NOGUEIRA, Otávio Pupo. A Indústria em face das leis do trabalho. São Paulo: Salesianas, 1935, p. 70)

Assustador ver o que pensavam os nossos industriais da década de 20 sobre o direito de férias. Resumindo, para eles, as casas dos operários eram muito ruins, por isso, se lhes fossem concedidas férias, eles passariam o tempo na rua, o que poderia levar-lhes a vícios e à quebra do “equilíbrio moral da sociedade” (não consigo escrever isso sem aspas)... Pior ainda é observar que a mentalidade não mudou. Simples assim. Não mudou em nada.

Os empresários continuam achando que férias é um favor da empresa, e não um direito do trabalhador. Não serve esse tempo de ausência ao trabalho para o obreiro ter seu momento de lazer e descanso, mas trata-se, sim, de um lapso para que ele recupere as energias para poder produzir mais em seguida. Mas havendo algum jeitinho que possibilite a não concessão das férias, imediatamente o patrão mais irresponsável vai colocá-lo em prática sem pestanejar.

A mentalidade escravocrata ainda não foi eliminada do nosso DNA, infelizmente. E pior, parece que cada vez mais se tenta retomá-la, mas sob novas roupagens.

É comum ainda hoje que se demita o empregado sem pagar um mísero tostão, sem o devido pagamento das famigeradas “verbas rescisórias”. Quer dizer, é normal que o obreiro trabalhe - que sua força de trabalho dê lucro para a empresa, portanto - e esta simplesmente deixe de cumprir a sua parte do acordo, mesmo tendo tais verbas natureza inegavelmente alimentar. Trata-se, novamente, de um "favor" do empregador que foi suficientemente benevolente para "permitir" que aquele empregado para ele trabalhasse.

É ainda mais comum que se contrate autônomo, PJ, cooperativado ou estagiário, que na verdade fazem o mesmíssimo trabalho que os empregados efetivos, afim única e exclusivamente de fraudar a legislação trabalhista, reduzindo os custos e retirando do trabalhador quase todos os direitos que arduamente conquistara ao longo da história, como férias, descanso semanal remunerado, limitação de jornada, fundo de garantia, seguro-desemprego, seguro previdenciário, fora os danos sociais pelo prejuízo direto da Previdência Social (INSS).

O Direito do Trabalho como um todo é visto, mesmo por profissionais do Direito, como um Direito menor, um “direitinho”, um não‑direito. Se quem compra e revende esse tipo de pensamento soubesse o tamanho da besteira que está falando, e a que tipo de gente serve essas idéias porcas, certamente não as repetiria, ou pelo menos não o faria a vozes tão altas e peitos tão estufados.

O que me incomoda não é o Eike Batista ou as Mulheres Ricas não entenderem o Direito do Trabalho, afinal, o capitalismo é avesso a qualquer intervenção estatal nas relações privadas, já que isso quase sempre representa menos lucro, menos dinheiro, menos poder. O frustrante mesmo é o trabalhador incorporar o espírito capitalista da empresa, sendo complacente com a (e por vezes partidário da) não aplicação dos seus próprios direitos.

E não estou falando dos mais humildes, que realmente nunca ouviram falar de direitos trabalhistas. Estou me referindo à classe média e à nova classe média, que não se sentem exploradas pelo patrão, mas só pelo “governo” e a sua “estratosférica carga tributária”, que teoricamente a impede de comprar barato o novo iPad, um carro conversível ou o apartamento mais alto do prédio, já que felicidade se mede em megabytes, cavalos de potência e metros quadrados no terraço. Esses sabem muito bem dos seus direitos, mas mesmo assim aceitam os argumentos de que “os custos são altos para os empresários”, de que “assim não haverá mais investimentos no Brasil”, de que “a ‘modernidade’ exige a flexibilização de leis protetivas”, de que “o direito tem que se adequar à dinâmica da realidade social” (como se o direito não fizesse parte e não se somasse a outros fatores na construção da sociedade), etc. etc. etc. Todas alegações muito bem construídas pelos neoliberais, desde o Consenso de Washington, para impor globalmente o capitalismo sem rédeas, que engole pessoas, domina almas, e, sobretudo, destrói a dignidade humana e afasta a igualdade e a justiça social. 

Isso me lembra muito a situação que ocorria quando, na época escravista, um negro liberto ganhava a vida e comprava escravos. Novamente, nada mudou. Quer dizer, de lá para cá mudaram os tempos, as formas, os meios e os nomes, mas as mentes continuam precisamente as mesmas. 

Mudar a mentalidade é certamente o passo mais difícil e trabalhoso de qualquer revolução. A classe dominante se mantém sempre unida e na defensiva, enquanto os que desejam mudar se dividem e subdividem, lutando uns contra os outros a respeito de diferenças ideais irrelevantes.

Digo mais: enquanto o meio‑termo, o centro, for tido como a posição mais sensata, nada vai mudar de verdade.

Gira mundo


Os últimos tempos foram para mim de muito aprendizado. Passei por poucas e boas, mas no fim está dando tudo certo. Por isso esse grande sem escrever nada por aqui, já que o tempo me faltava para simplesmente sentar e escrever algo que me ocorria.

A primeira mudança foi relacionada ao meu trabalho. Antes tinha uma rotina tranqüila de trabalho e acabava dando tempo de ler bastante coisa, refletir, pesquisar e escrever.

Porém, fui transferido de setor por decisão unilateral da diretoria à qual pertencia. Algo muito, mas muito, desagradável e revoltante, mas é melhor não comentar mais sobre isso.

O fato é que acabei pegando uma das funções mais pesadas do Tribunal onde trabalho, que é a de balconista. Eu era o cara que atendia os advogados e o público em geral na Vara do Trabalho em que fui lotado. Correria absoluta o dia inteiro, já que os advogados têm o dom de querer olhar justamente os processos que não estão no lugar onde deveriam. Ser a boca e o ouvido de uma vara do trabalho, sobretudo na cidade de São Paulo realmente não é nada fácil. E como não dava para sentar, o pé doía muito. E como não dava para respirar nem suspirar, a alma doía mais ainda.

Apesar de esse negócio de fazer as coisas em velocidade absolutamente acelerada não ser nem de longe o meu perfil, acabei me adaptando com o passar dos dias, tendo, inclusive, recebido vários elogios, tanto dos meu chefes quanto de colegas de trabalho. Senti algum orgulho, já que não deixou de ser uma vitória. Nesse meio tempo, conheci pessoas ótimas, muito boas, com quem faria questão continuar a amizade se o futuro permitisse.

Mas algo realmente bom estava para acontecer. Então veio a segunda mudança. Meu trabalho, pra resumir a história, me “obrigou” a retornar para Campinas. Se isso acontecesse no ano passado, certamente eu iria achar a pior coisa do mundo, já que eu estava na faculdade ainda e eu quis ir de São Paulo exatamente para terminá-la, pois estava sendo absurdamente sacrificante ter que pegar a Bandeirantes todo santo dia e ainda ir para a faculdade toda santa noite. Mas agora, veio a calhar.

Tendo colado grau, nada, ou quase nada, me segurava à capital. E para mim, já estava na hora de sair de lá. Tudo muito caro, muito longe, muito grande, muito lotado, muito trabalhoso, muito triste, algo que não me pertencia mais, se é que um dia chegou a pertencer.

Agora, estou em Campinas. E desta vez muito animado para esse novo começo. Cheguei a criticar fortemente a cidade pela má primeira impressão que tive, pois o transporte público deixa muito a desejar e, além disso, o Tribunal daqui protelou a minha transferência para São Paulo, que à época era urgente, o que contribuiu para que eu pegasse certa birra da cidade.

Porém, nesta nova fase só tenho elogios. Parece estar tudo em ordem e a cidade está me parecendo um bom, se não excelente, lugar para se morar.

O que me alegra é poder estar um pouco mais perto da minha família e da minha namorada (que também é da família. RS)

Além do que, agora estou trabalhando com Direito, mais do que isso, com Direito do Trabalho, que é o que eu realmente quero para mim, pois considero ser o palco central do capitalismo, ponto nevrálgico de onde emergem os mais intensos conflitos sociais. Posso fazer a minha pequena parte para tentar mudar alguma coisa nessa realidade desigual e perversa que se desenrola a cada dia.

Agora estou aqui, escrevendo do mesmo hotel em que há quase dois anos eu fiquei algumas vezes por estar excessivamente cansado, ou para fazer um trabalho da faculdade que não daria tempo de terminar se retornasse à grande selva de pedra devoradora de almas chamada São Paulo.

Hoje  não penso em voltar para São Paulo, mas vai saber se daqui há um tempo não estarei escrevendo mais ou menos o mesmo que disse sobre Campinas a respeito da terra da garoa, da terra da oportunidade?

Gira mundo.