Parte do pensamento econômico
de hoje tenta resgatar o pensamento liberal de Adam
Smith. Seus propugnadores sentem-se ofendidos com o uso do termo "neoliberalismo" para definir a aplicação de uma nova teoria de cunho liberal na economia
política a partir do final da década de 70, impulsionada pela atuação incisiva
de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, que, justificando-se pelo novo
liberalismo de Hayek e Friedman, implodiram o Estado de Bem-Estar Social.
A definição de social que os liberais usam é a da
voluntariedade, da autonomia. Sempre que há autonomia e liberdade individual,
há sociedade. Certamente esqueceram-se de ler o clássico da literatura “Robinson
Crusoé”, o que lhes permitiria perceber que o conceito que têm de sociedade é precisamente a definição
de indivíduo. Social relaciona-se a solidariedade entre as pessoas, sendo,
assim, o oposto da individualidade.
Os liberais argumentam que a
ideia de Estado está equivocada e é imoral porque se trata de coerção, de armas
apontadas determinando às pessoas o que fazer. O indivíduo só age de
determinada maneira por estar sob a mira da arma do Estado. Ou seja, o
pressuposto é que o uso da força é ilegítimo em qualquer situação. Porém, fico
me imaginando a posição do liberal quando ele, de posso de uma arma, depara-se com alguém prestes a matar um inocente. Não seria o caso de usar a
arma exatamente para acabar com a opressão e libertar o oprimido?
Ignorando todo o conhecimento das
demais áreas do conhecimento de humanidades, esses liberais afirmam que os monopólios só o são
porque satisfazem os consumidores (ideia que a própria Economia já
refutara há tempos, pois um ente poderoso de mercado, detendo mais conhecimento
do que os menores, vai inevitavelmente lesar a livre-concorrência e submeter os
seus rivais).
Mas e se o monopólio for tão intenso que atinja dos produtos
primários aos supérfluos? Aliás, em tese, o monopólio de qualquer segmento irá desembocar
em monopólios de vários deles, que irão recair em monopólio de todos os
produtos, inclusive de produtos básicos, como alimentos, educação, saúde,
comunicação e transporte. Afinal, os entes econômicos agem, na maior parte
das vezes, racionalmente, e dominar todos os mercados, do ponto de vista
econômico, é sem dúvidas o mais lógico a ser feito.
Ademais, sem o Estado, o que garantiria o
cumprimento dos contratos e a própria propriedade privada? O Estado é formado
por seres humanos investidos de poderes públicos. Existindo uma contenda entre um
contratante e outro ou entre um proprietário e um não proprietário, um ser humano vai decidir quem está com a razão, e, com isso, vai
aplicar a lei conforme a tenha interpretado, tendo em vista toda a sua carga cultural e visão
de mundo. Não existe aplicação neutra das leis, assim como não existe
neutralidade na Economia.
A meu ver, o problema não é o
Estado em si, mas quais interesses o Estado representa, afinal, de fato, os
governos são formados pela classe dominante. Se o Estado for pensado para
efetivamente construir uma sociedade solidária, do ponto de vista dos
interesses do povo e dos trabalhadores, não das grandes empresas, o seu
fortalecimento é o único caminho viável para a justiça social e a conquista da
igualdade material.
Ainda, a cruzada da liberalização tem
uma contradição intrínseca. Quanto mais a força do Estado vai diminuindo, mais são os
detentores do poder econômico que restam no seu comando. Afinal, o poder que
era do Estado vai parar em algumas mãos, que, no caso, por estarem liberadas as
amarras anti-predatórias, são as das grandes corporações, que já antes possuíam imenso poder. Para a aplicação do
liberalismo puro seria necessária uma empreitada revolucionária.
Com efeito, não é à toa que o liberalismo é defendido por grandes bancos, privados e governamentais, pelas grandes corporações que já detém monopólios ou oligopólios, pelos bilionários e etc., porque eles sabem que a desregulamentação progressiva só vai acarretar mais concentração do poder econômico. Aplicando a Lei de Lavoisier, segundo o qual nada se cria, tudo se transforma, o poder que se retira do Estado será canalizado para algum lugar, e pelo próprio raciocínio econômico chega-se à conclusão de que cairá nas mãos de quem já detém o grande poder econômico. Ou seja, os neoliberais apenas instrumentalizam a teoria liberal, que de fato é muito bonita e sedutora ao propor a liberdade como valor humano único e supremo (como se a liberdade só ela pudesse garantir outros valores no mínimo igualmente importantes, como a igualdade), para perpetuar, senão aumentar, seu poder econômico e social.
Ademais, o liberalismo puro
presente durante a Revolução Industrial mostrou que as consequências sociais da
falta de regulamentação do capital são catastróficas.
O argumento de que nunca se viu
uma sociedade capitalista totalmente liberal, sem qualquer interferência do
Estado e que não devemos deixar de almejá-la porque não sabemos se vai ou não
dar certo, tal como antes havia resistência à abolição da escravatura, é
completamente falacioso. Afinal, valeria para tudo o que se imaginasse. Em vez de
falar “Está errado dizer que o liberalismo pleno será ruim, afinal, antes de se
libertarem os escravos também havia resistência e hoje se sabe que a escravidão
é algo terrível” poderíamos falar qualquer coisa, inventando qualquer tipo de
sociedade, por exemplo “Está errado dizer que uma sociedade regida
exclusivamente por polvos adivinhos será ruim, afinal, antes de se libertarem
os escravos também havia resistência e hoje se sabe que a escravidão é algo
terrível”. Ou seja, ao se vislumbrar uma sociedade e um sistema socioeconômico
melhor, deve-se ter em mente não só as experiências passadas (no caso do
liberalismo pleno, a Primeira Revolução Industrial chegou bem próximo a ele),
mas também deve-se pensar no que as teoria e abstrações teóricas nos mostram a
respeito, não somente de um único e exclusivo ramo do conhecimento, como a
Economia, mas levando-se em conta o que diversos ramos das ciências humanas, e
mesmo biológica, tem a nos dizer, como por exemplo as Ciências Políticas, a
Sociologia, a História, a Antropologia, a Filosofia, a Psicologia, o Direito, a Geografia.
Em um modelo ideal de sociedade
devemos levar em conta alguns fatores. É bom que as pessoas se ajudem? Seria
bom que o grande fator de coesão social fosse a solidariedade humana, com as
pessoas ajudando-se umas às outras? Ou o melhor é um sistema que tenha lastro
exclusivo no individualismo puro e simples, o “cada um por si”, vendo com maus
olhos qualquer tipo de ajuda social de uns para com os outros, taxando a assistência ao desamparado como algo sempre abominável?
O que os liberais parecem não
querer admitir é que liberdade sem igualdade é simples dominação.
Os liberais sinceros acreditam
mesmo que a teoria liberal é válida e, mais do que isso, que se trata da solução
para as mazelas da sociedade. E o fazem porque ignoram que a economia não só
sofre interferências como tem a própria sorte determinada por fatores externos
a ela, interesses dos mais diversos, sobretudo sociais e políticos. E isso não vai
mudar, pois o sistema capitalista favorece a essas interferências. Por ignorar
essa falta de pureza da economia, acreditam que é possível afrouxar as amarrar
do capital sem causar mais dominação e sem agravar aquelas mesmas mazelas que
pensam ter a solução para combater. Ainda que o Estado desapareça, a economia,
ainda assim, ficando à própria sorte, estará sob a influência dos mais diversos
interesses.
A tragédia está, na verdade, no fato de que do ponto de vista
estritamente econômico, o desenvolvimento social é algo neutro, não um objetivo
a ser perseguido. E nesse sentido, a liberalização plena, não só no sentido do
fim do Estado, mas do modo de pensar humano, no todo individualista, é o abandono de qualquer pensamento e atitude sociais e coletivos, que acaba
inexoravelmente se traduzindo na perpetuação da dominação, da desigualdade e da
pobreza.
Esse novo liberalismo é uma releitura
do liberalismo clássico que aceita alguma interferência regulatória do Estado.
Sabem, embora não admitam, os neoliberais que o Estado é um aliado do grande
capital na manutenção da exploração humana. A teoria é bonita, mas a prática se
mostra nefasta. Novamente, o que os liberais parecem ignorar é a
impossibilidade de aplicar uma teoria pura da economia e separá-la
completamente de influências externas.
O liberal acredita que para se
implantar o liberalismo deve-se simplesmente não fazer nada. Confesso que
invejo o conforto dessa posição ideológica, posto que é possível melhorar o
mundo sem agir. Porém, há uma contradição nesse pensamento. Se o liberal não
faz nada para que prevaleça o liberalismo, então alguém vai fazer para impor
outro padrão econômico, quem sabe os intervencionista, os desenvolvimentista, os keynesianos, os socialista, os comunista ou os anarquista. E com um adversário
completamente passivo, a vitória é certa para o lado que ao menos se mexeu.
Pode-se criticar o uso do termo
neoliberalismo. Mas o fato é que, cientificamente, pode-se dar o nome que bem
entender ao objeto de estudo. E o nome, diga-se, é bem adequado, já que sendo o
liberalismo aplicado hoje baseado no liberalismo clássico, com algumas
peculiaridades, não há nenhuma razão para fúria quanto ao nome. Se fosse um sistema que tivesse dado
certo, certamente não haveria essas críticas. E não se diga o verdadeiramente pretendido pelos neoliberais não é o real liberalismo puro, mas sim o apoio do Estado para
prosseguir sua dominação, porquanto o que ocorre é o uso da justificativa liberal
para sustentar as políticas liberais do Estado, que apenas perpetuam a
desigualdade e a dominação.