quarta-feira, 7 de março de 2012

Sobre a laicidade do Estado


Excelente texto sobre a laicidade do Estado, escrito pelo meu amigo Guilherme Kamitsuji.


"O dia 6.3.2012 pode ser considerado um marco na luta pela afirmação da laicidade do Estado no Brasil.

O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por decisão unânime, acatou o pedido da Liga Brasileira de Lésbicas e de outras entidades sociais sobre a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça Gaúcha.

O Relator do caso, Desembargador Cláudio Baldino Maciel, defendeu que uma sala de julgamento sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não parece a melhor forma de mostrar o Estado-juiz equidistante dos valores em conflito. Defendeu que nos referidos espaços somente deveriam comportar os símbolos oficiais do Estado.

Este julgado remete a um caso analisado ano passado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), que anulou a condenação imposta à Itália em relação à recusa de retirar crucifixos das salas de aula, frente a uma queixa de uma cidadã ítalo-finlandesa, a qual argumentou que a presença dos referidos objetos religiosos poderia constranger a opção dos não-cristãos, além de exercer potencial capacidade de doutrinação dos alunos.

A Corte Europeia alegou que a presença dos crucifixos era inofensiva à preservação da laicidade do Estado, porque não representava proselitismo, mas sim a herança cultural e histórica da Itália.

Não discordo desse argumento. Contudo, há uma gama maior de fatores que deveriam ser considerados com mais apreço pelos julgadores. 

É demasiado exagero considerar que a retirada dos crucifixos atenta contra o legado histórico e cultural dos países. Isto porque basta ver o número de feriados de origem religiosa que temos no calendário do Brasil e da Itália.

Ambos os países têm cidades que são considerados patrimônio cultural da humanidade em razão das construções e obras artísticas sacras existentes, como é o caso de Roma, Salvador, Ouro Preto... fora os milhões de turistas que vão à Itália para seguirem viagem ao Vaticano. Ou seja, há um intenso turismo em função do legado religioso.

Acho muito difícil haver alguma cidade brasileira sem alguma Igreja ou templo cristão. Quase todo bairro tem uma. O mesmo vale para a Itália, todo vilarejo tem sua Igreja.

Se você pegar um livro de história do Brasil, você vai contar nos dedos de uma mão o número de capítulos em que não há menção à Igreja Católica. Estudar a origem do Brasil implica estudar algum feito da Igreja. Não deve ser diferente na Itália, acredito.

Aqui no Brasil não se passa uma semana sem termos alguma notícia que envolva a Igreja. E ainda por cima, um braço da Igreja Católica, a CNBB, opina sobre tudo e todos em nosso país. Não podemos esquecer também que a Igreja tem diversas concessões de rádio e tv em território nacional.

Na Itália não é diferente, até por causa do Vaticano. A rotina do Papa é notícia assim como é a do Presidente e das celebridades.

Resumindo, nem mesmo se os italianos e brasileiros deixarem de frequentar a escola, eles vão deixar de se lembrar do legado histórico e cultural da Igreja e de seus próprios países. Só mesmo a morte, um estado de coma profundo ou o ostracismo podem fazer com que esqueçamos estes legados.

A Constituição do Brasil estabelece que a educação é um dever do Estado e nos últimos anos aumentou vertiginosamente o número de crianças e jovens matriculados em instituições públicas de ensino. E cabe também ao Estado zelar pela liberdade religiosa e pela sua laicidade.

Por mais que os crucifixos representem o legado histórico e cultural, o respeito às pessoas de outras religiões -  e até mesmo aquelas que não possuem nenhuma – também deve contar. Como procurei explicar anteriormente, o peso da herança da Igreja, seja aqui ou na Itália, é tão forte, que a retirada dos crucifixos é praticamente inofensiva.

Em termos mais grosseiros, a decisão do TJRS é acertada porque entre adotar um símbolo que representa a maioria e procurar cotejar todas as demais crenças religiosas aqui existentes, a opção de não privilegiar nenhuma religião é a mais acertada, justamente para abarcar a pluralidade de credos aqui existentes - e o grande número de pessoas que não professam nenhuma fé.

Não devemos esquecer também que uma característica essencial dos direitos humanos é ser contra-majoritária, ou seja, devem resguardar a dignidade das minorias e daqueles que se encontram sub-representados. 

Ademais, a escola é local de transmissão do conhecimento, científico principalmente, porque os ensinamentos religiosos encontram nas casas dos fiéis e nos templos os lugares adequados para sua difusão. A escola deve transmitir conhecimento científico acima de tudo.

Tanto no Brasil quanto na Itália, as instituições religiosas exercem enorme influência na política, tanto que são raros os políticos que ousam se opôr a elas. Argumentar que tirar crucifixos de prédios públicos atenta contra o legado histórico e cultural é argumento fraco, só representa a vontade de continuar a influenciar o poder..."

Nenhum comentário:

Postar um comentário