Dia
desses vi alguém dizer que o mundo é assim mesmo, cruel, injusto, desigual, e
que devemos aceitar essa realidade e nos esforçar para vencer na vida.
Pensei
a respeito e concluí que essa pessoa tem toda razão. Genial!
Antes
eu achava injusto que existissem pessoas que não têm onde morar e nem o que comer,
enquanto outras velejavam em seus iates e faziam coleção de Ferraris. Hoje vejo
o quão idiota eu era. É tudo questão de esforço pessoal! O sistema é
maravilhoso porque proporciona oportunidades iguais para todos subirem e
vencerem na vida, e por “vencer na vida” entenda-se “ganhar muito dinheiro”.
Assim,
quem nasce em uma favela, filho de empregada doméstica e de porteiro
semi-analfabetos, tem a mesmíssima chance de se tornar presidente de uma empresa
multinacional do que o filho de um executivo milionário. Tudo é questão de
trabalho duro. Vi que, no mundo, 85 pessoas detêm mais riqueza do que 3,5 bilhões
de pessoas e, meu deus!, como eu admiro esses 85, porque eles se esforçaram e
trabalharam mais do que metade da humanidade, um exército de vagabundos, dentre
os quais eu me incluo - por enquanto, pois estou me esforçando para ser o 86º!
E concluí
isso porque conheci casos de gente que nasceu bem pobre e tornou-se muito rica.
Acontece isso com uma pessoa em um milhão, mas pra mim já basta. É só ignorar 999.999
casos e pegar aquele único de exemplo e, pronto!, está “provado” que o sistema
funciona e é bom pra todo mundo!
Por
esse mesmo raciocínio, concluí que a escravidão era excelente, pois a história
mostra que alguns escravos conseguiram se libertar e virar, eles mesmos, proprietários
de escravos, ou seja, só continuava escravizado quem quisesse! Aliás, seguindo
nesse pensamento, não existiu holocausto na Alemanha Nazista, pois houve casos
de judeus e negros que conseguiram fugir e acabaram sobrevivendo, o que mostra
que só morreu quem quis, comprovando que aquele regime não era cruel. Da mesma maneira, vendo
reportagens sobre violência sexual percebi que algumas mulheres conseguiram reagir
e se livrar de estupros, donde concluí que mulher só é estuprada quando quer, por
“sem-vergonhice” mesmo, uma vez que se quisesse teria evitado a conjunção carnal.
Enfim,
achar um exemplo de “superação” e com isso julgar todas as outras vítimas de
determinada injustiça é sempre a melhor saída para negar a própria injustiça! O
injusto vira justo num passe de mágica. Como não pensei nisso antes? Maldito
petralha comunista esquerdopata que eu era!
Afinal,
quantos peões de fábrica a gente não vê por aí cotidianamente comprando a fábrica
onde trabalha e ficando mais rico que o próprio patrão? (Pausa reflexiva) Bom, sinceramente
não estou lembrando, no momento, de nenhum caso (Walter White não vale), mas
deve existir algum... Cortadores de cana, por exemplo, são todos preguiçosos,
não trabalham como deveriam, já que se pegassem no batente direitinho seriam bilionários;
já o Eike Baptista, esse sim é trabalhador, pois se esforçou arduamente para assinar
a papelada da herança do patrimônio que o seu papai construiu aliando-se à
ditadura militar, e seu filho Thor, coitado, terá o mesmo destino.
Doravante,
acho absurdo o pensamento de quem discorda de mim, geralmente esses que se
revoltam contra a injustiça que acomete os outros e se juntam a eles na luta
para que as coisas mudem. Quem presencia uma injustiça, penso eu, tem que se
calar - como diz o meu novo deputado favorito Jair Bolsonaro – e não querer
ajudar. Do contrário, se estará violando o direito sagrado que o opressor tem
de continuar oprimindo o mais fraco. Aí já é vandalismo!
E
quando argumentam comigo, dizendo que sou insensível, eu imediatamente mudo de
assunto e parto para o ataque pessoal, de duas maneiras:
(i) perguntando por que a pessoa tem iPhone, já que o capitalismo
é tão ruim, mas para isso cinicamente finjo que desconheço os fatos da internet
que o celular usa ser proveniente de entidade estatal, e não do livre-mercado, e
dos satélites, também usados pelo smartphone, terem sido inventados pelos
comunistas; e
(ii) perguntando por que a pessoa não doa sua casa e seus bens
para os pobres, afinal, o que conta não é a luta coletiva feita de modos
efetivos para resolver definitivamente o problema, e o fardo de todos esses
séculos de injustiça é exclusivamente de quem se propõe a ajudar, ou seja, quem
não faz voto de pobreza tem o dever de achar o capitalismo justo e maravilhoso,
e nesse ponto, dissimuladamente finjo não saber que a luta dos esquerdistas é
pela socialização dos bens de produção, e não dos bens pessoais.
Mas
tudo bem, pelo menos desvio o assunto, pois meus argumentos pró-“trabalho duro”,
por alguma razão que ainda desconheço, não costumam convencer muitas pessoas,
sobretudo as mais letradas, talvez por não estarem ainda preparadas para minhas
revelações tão perspicazes.
Agora me dêem licença que eu vou
comentar notícias nos grandes portais, em caixa alta, xingando os
miseráveis, falando mal dos direitos humanos e pondo a culpa de todos os males
do país, de Cabral até hoje, no PT.
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